"Porque é que andas de mota? Porque é que não és mais feminina? Porque é que não usas maquilhagem?" Estas são apenas algumas das perguntas a que Sara Shahverdi é habitualmente sujeita enquanto insiste em seguir o seu caminho (sem precisar de um homem ao lado) numa pequena localidade iraniana.

A protagonista de "Cutting Through Rocks", documentário assinado pelo casal Sara Khaki e Mohammadreza Eyni, iranianos radicados nos EUA, será a única exceção que confirma a regra numa estrutura social, política, religiosa e cultural em que poucas vozes ousam desafiar o patriarcado. A sua fez-se ouvir desde cedo, conforme vai contando ao espectador no filme, encorajada por um pai que não abdicou de lhe dar a liberdade que muitos iranianos apenas concedem a um filho. Por isso, esta parteira com um longo trabalho reconhecido pela comunidade foi livre para poder vestir roupas "pouco femininas", como comenta alguém a certa altura, ou para explorar sem travão uma das suas grandes paixões, talvez mesmo a maior: andar de mota.

Cutting Through Rocks
Cutting Through Rocks

Recusando deixar críticas e provocações sem resposta enquanto se faz ouvir pelos direitos das mulheres desde a infância ("Não quero meninas de 11 anos com dois filhos", vinca), Sara é admirada por muitas, olhada de lado por tantas outras e tolerada pelos homens da região a ponto de lhe permitirem candidatar-se a vereadora local. Surpresa (ou nem tanto): acaba eleita, e "Cutting Through Rocks" sugere que esse pequeno grande passo inédito poderá ser o início de uma mudança mais ampla.

Relato inspirador? Até certa altura, o filme que venceu o prémio Jean-Loup Passek para melhor longa-metragem internacional no MDOC (depois de ter conquistado o Grande Prémio do Júri no festival de Sundance, entre outros) parece encaminhar-se para aí, acompanhando o nascer de uma nova esperança num contexto que precisa desesperadamente dela (como nas cenas comoventes em que a protagonista  leva jovens raparigas a andarem de mota, ainda que com o rosto coberto). Mas o idealismo da dupla de cineastas tem limites: uma andorinha não faz a primavera e a reta final deste documentário expõe, entre a frustração e a angústia, que os obstáculos sistémicos não se deixam intimidar por pequenos triunfos restritos e pontuais.

Cutting Through Rocks
Cutting Through Rocks

Ainda assim, esses triunfos merecem ser celebrados e partilhados. E ajudam a tornar este olhar em mais um testemunho urgente do cinema iraniano que tem conseguido chegar a salas nacionais (diga-se que além da sala da Casa da Cultura, em Melgaço, onde foi exibido há poucos dias, merecia muitas outras).

Não pretendendo gestos radicais na forma, sendo até algo didático a espaços (como quando aborda a total falta de proteção jurídica das mulheres em casos de heranças familiares), "Cutting Through Rocks" tem o mérito de um sentido de observação justo e sem rodriguinhos. E deixa algumas grandes sequências, como a que contrasta dois casamentos, passando de um grande plano no presente para imagens de arquivo que dão nova luz (e ainda mais sombras) à jornada conturbada, admiravelmente transgressora e sempre muito específica de Sara.

O SAPO Mag viajou a Melgaço a convite da organização do MDOC.