É assim que, durante uma hora e vinte minutos, a atriz brasileira Vera Holtz traz ao palco várias questões e poucas respostas sobre as condições e as inseguranças dos seres humanos através de uma breve história da humanidade. Ao lado do músico multi-instrumentista Federico Puppi, o diálogo parte do livro best-seller ‘Sapiens’ (do filósofo Yuval Noah Harari) para logo entrar em rota de colisão com as condições materiais criadas e desenvolvidas pela única espécie capaz de se organizar mediante a fala.
Idealizado por Felipe Heráclito Lima, o premiado espetáculo ‘Ficções’ está em cartaz no Teatro Tivoli de Lisboa até ao dia 3 de março (de quinta a sábado, às 21h00, e aos domingos, às 17h00), com datas também nas cidades do Porto, Póvoa de Varzim, Figueira da Foz, Vila Real, Leiria e Famalicão. O enredo, escrito pelo encenador Rodrigo Portella, também é composto e influenciado por outras obras literárias. Com uma banda sonora muito bem trabalhada que envolve a plateia por todos os lados do teatro, Holtz interage com os presentes através de conversas improvisadas seguindo o ritmo grave e afiado do violoncelo de Puppi.
Ao trabalhar com o imaginário, o objetivo do monólogo é desafiar o espectador a avaliar como a capacidade de criação coletiva que rege quase tudo que nos envolve (desde o conceito de nação, passando pelos sistemas económicos, políticos e religiosos) pode proporcionar-nos uma felicidade jamais atingida pelos nossos ancestrais.
Será que mesmo com essa aptidão única de não se mover apenas pelos próprios extintos, como fazem quase todas as outras espécies, vale a pena continuar? É possível ter um filho diante de um mundo caótico? É viável manter-se vivo num ecossistema tomado por guerras, crises ambientais e comportamentos ultra individualistas preenchidos cada vez mais pelo consumo?
De forma arrebatadora, Vera Holtz consegue envolver as pessoas num jogo teatral que parte de um pensamento comunitário à autoavaliação, reforçando no decorrer da narrativa que a ficção, muitas vezes, está completamente ligada à realidade. Com um cenário simples, mas primoroso e cheio de subjetividades, a peça incentiva a que o espectador pense como esse poder imagético pode transformar-se em máculas na vida real dos indivíduos, principalmente quando há um recorte de género, raça e classe.
A quantidade de aplausos à ‘mulher sapiens’ após esse ponto específico da apresentação traduz o ápice da sua performance. E é neste ponto de convergência que a atriz consegue arrebatar o ‘rebanho’ composto, na sua maioria, por pessoas brancas e de classe média.
Ao colocar em voga a causa das responsáveis pelo ‘início da vida’, Vera Holtz deixa no ar a angústia daquelas que lutam pelo direito básico de existir. E ninguém melhor do que uma mulher trabalhadora das artes, exibindo os seus longos cabelos grisalhos, para facultar algumas verdades que muitos preferem não ouvir. Afinal, a realidade é muitas vezes a mais ousada das ficções.
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