Estamos a 6 de janeiro de 2025, e o presidente dos EUA acompanha, horrorizado, enquanto o seu rival, derrotado por uma pequena margem, convoca as Forças Armadas para ajudá-lo a reverter o resultado de uma eleição "fraudulenta".

A cena é de "War Game" ("Jogo de Guerra", em tradução literal), um novo documentário lançado na terça-feira (23) no Festival de Cinema de Sundance. A obra apresenta ex-funcionários reais do governo americano, assim como do Exército, numa espécie de RPG sem argumento que recria outro eventual assalto ao Capitólio dos Estados Unidos.

Para os seus realizadores, o cenário está longe de ser absurdo, ao evocar os acontecimentos de 6 de janeiro de 2021. A diferença, desta vez, é que polícias e soldados corruptos se juntam aos protestos em todo o país.

"É assustador o quão atual o filme continua a ser", diz o corealizador Jesse Moss.

"E preocupa-me o quão atual poderá ser durante o próximo ano", completou.

No filme, o ex-governador de Montana Steve Bullock assume o papel do presidente dos EUA, que tem seis horas para decidir como enfrentar uma tentativa de golpe que avança a todo vapor.

Os seus conselheiros são interpretados por personagens da vida real, como senadores americanos, agentes do FBI (a Polícia Federal dos EUA) e da Agência Central de Inteligência (CIA), coronéis militares e até um ex-comandante da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan ou Nato).

Todos se reúnem numa sala de guerra cuidadosamente projetada - inspirada em "Dr. Estranhoamor", de Stanley Kubrick - e recebem atualizações e relatórios dos Serviços Secretos, redes sociais e canais de notícias fictícios.

"Isso foi, durante seis horas, uma experiência real para todos nós", disse Bullock à France-Presse.

"Era um ambiente stressante (…) ninguém estava a pensar que havia ali câmaras", acrescentou.

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Simultaneamente, um grupo paramilitar fictício chamado "Order for Colombus" ("Ordem para Colombo", em tradução literal), interpretado por veteranos americanos, reunia-se noutro local para espalhar desinformação 'on-line' e encorajar os soldados a romperem as fileiras.

O "role-playing exercise" (uma técnica de simulação de eventos reais) foi inspirado numa coluna escrita por três generais americanos no jornal The Washington Post em 2021. No texto, eles advertiam sobre o crescente extremismo dentro das Forças Armadas e faziam um apelo ao Exército para se preparar para uma possível insurreição após as eleições de 2024.

"Um número perturbador de veteranos e membros do serviço do Exército fez parte do ataque ao Capitólio", observou a coluna.

"Não se pode descartar a ideia de que unidades corruptas se organizem para apoiar o comandante em chefe 'legítimo'", escreveram os generais.

A Vet Voice, uma fundação que representa veteranos do Exército e as suas famílias, decidiu realizar o exercício. Concordaram em permitir a entrada de câmaras para o documentário e entregaram um relatório sobre o exercício à Casa Branca, ao Congresso e ao Pentágono.

"A única resposta que receberam até agora foi um 'obrigado' por parte do governo", disse a a diretora-executiva da Vet Voice, Janessa Goldbeck.

"Há muitos amigos dentro da administração que trabalham neste assunto, mas é controverso", acrescentou.

"Há muitas críticas de que é desrespeitoso para com nossas tropas e os nossos veteranos falar desse tema", completou Goldbeck.

Trump

Embora "War Game" use candidatos fictícios, é difícil não associar a influência do ex-presidente Donald Trump nos procedimentos.

A certa altura, durante um debate sobre invocar ou não a Lei de Insurreição - que permite ao presidente usar tropas federais para reforçar a autoridade -, o nome de Trump é mencionado por dois "conselheiros".

Trump deu pistas de que ampliará o papel dos militares nos EUA se ganhar um segundo mandato.

Além disso, enfrenta o julgamento por conspirar para anular os resultados das eleições de 2020, nas quais foi derrotado pelo democrata Joe Biden.

Os realizadores de "War Game" ressaltam que Trump estava "na periferia" na época da rodagem, há mais de um ano, e que nela participaram figuras republicanas e democratas.

Moss diz que as forças que levaram aos acontecimentos de 6 de janeiro de 2021, como a polarização política e a "realidade alternativa, na qual alguns parecem habitar, (…) transcendem Donald Trump".

Ele acrescentando, contudo, que Trump se colocou no centro das atenções.

"Acho que as ameaças que recriamos no filme são verosímeis, aterrorizadoras e muito reais", completou.