"Quando era miúdo, só queria fazer terror, fantasia e noir. Esses foram os meus primeiros amores", recorda o autor de "A Forma da Água", "Batalha do Pacífico", "O Labirinto do Fauno" ou das primeiras adaptações cinematográficas da saga "Hellboy". "Até fiz uma curta noir no México sobre polícias corruptos", assinala, embora grande parte da sua filmografia, que o tornou num dos realizadores sul-americanos mais determinantes de Hollywood nas últimas décadas, tenha partido mais de territórios do terror e da fantasia.
O novo filme do mexicano (que o SAPO Mag já viu) propõe, por isso, um momento de viragem ao ser menos marcado pelo sobrenatural do que os antecessores. Adaptação do romance "Nightmare Alley" (1946), de William Lindsay Gresham, já levado ao cinema em 1947 por Edmund Goulding, é o tipo de filme que alguém que lia James M. Cain ou Donald Westlake na adolescência gostaria de vir a fazer. "Comecei por me apaixonar por esse tipo de literatura", explica. "Histórias de detetives. [Raymond] Chandler. Cornell Woolrich. E os mais difíceis, James Hadley Chase e assim, até ao neo-noir. Dos mexicanos, Paco Ignacio Taibo", enumera na conferência de imprensa virtual na qual o SAPO Mag esteve presente.
"Apaixonei-me pelo género porque penso que, tal como o terror, desfaz as ilusões de normalidade", descreve. E tanto os conceitos de normalidade como de ilusão estão no centro de "Nightmare Alley - Beco das Almas Perdidas", a jornada sombria e tumultuosa de um homem que parte de uma feira itinerante rumo à alta sociedade nova-iorquina dos anos 1940.
Bradley Cooper lidera um elenco de luxo que conta ainda com Willem Dafoe, Cate Blanchett, Toni Collette, Rooney Mara, David Strathairn, Richard Jenkins e o cúmplice habitual Ron Perlman. "Uma das razões pelas quais achei que o Bradley conseguia fazer isto é porque parece uma estrela dos anos 1930 e 1940", conta del Toro, que oferece ao ator um dos seus maiores desafios interpretativos. Embora o elenco seja relativamente numeroso, é ele que se mantém sempre no centro deste conto negro ao longo de mais de duas horas, numa reflexão sobre as promessas e o preço do Sonho Americano.
O Sonho Americano, esse "incrível gerador de pesadelos"
"Acho que há um vazio dentro dele. E uma necessidade de mais e mais e mais que me parece pertinente", diz o realizador sobre o protagonista. "Ele é absolutamente composto de mentiras. Não está protegido pela verdade, sobre ele ou os outros. Por isso, está sempre em risco", observa.
"É uma história humana e podemos olhar para ela de várias formas. E também é um retrato de um certo tipo de ambição, um certo tipo de capitalismo, um certo tipo de exploração de outras pessoas em função da nossa felicidade", acrescenta Willem Dafoe. "Quanto mais temos, mais queremos, seja comida, sexo ou ambição. É algo que nos é intrínseco. Não sabemos quando parar. E também se reflete na ambição política ou económica, vemos isso a toda a hora", diz ainda o ator que encarna o dono da feira itinerante que acolhe a personagem de Bradley Cooper no início do filme.
"É sobre desejo. E no caso da minha personagem, sobre entender a natureza do desejo e da adição, e a relação que uma tem com a outra. Essa insatisfação que é um traço humano. Nunca estamos felizes com o que temos", vinca.
"Disse muitas vezes, ao longo de décadas, que considero a noção de sucesso incrivelmente tortuosa", confessa Guillermo del Toro. "Julgo que, enquanto artista, a definição de sucesso é estragarmos as coisas nos nossos próprios termos. Basicamente, é isso. Não é sobre se as pessoas aplaudem o que fazemos, mas sobre como nos sentimos a expressar o que somos. Demorei algum tempo a perceber isso. E acho o Sonho Americano um incrível gerador de pesadelos".
Em "Nightmare Alley - Beco das Almas Perdidas", o realizador expressa-se colocando questões "muito cruas e morais". "Quis preencher o filme com a ansiedade do nosso tempo. Porque não quisemos fazer um filme sobre aquela época, quisemos fazer um filme sobre o agora. Um momento-chave em que temos de distinguir narrativas verdadeiras e enganadoras na nossa realidade".
Um amor pelas personagens com a bênção de Scorsese
Willem Dafoe conta que o que o atraiu na colaboração com Guillermo del Toro foi o interesse do realizador "em criaturas marginalizadas, monstros que estão fora da sociedade". "Gosto que ele os humanize, torna-nos mais próximos deles e mais compassivos em todos os seus filmes", sustenta. "Pega em coisas que não estavam relacionadas, junta-as e cria um híbrido. Isso é muito especial nele".
O ator dá como exemplo "Nas Costas do Diabo" (2001), um dos filmes que contribuíram para a popularidade inicial do mexicano. "É um filme de época com contornos políticos e é um filme de terror, é uma mistura. Isso é muito interessante".
David Strathairn, que interpreta um mentalista veterano em "Nightmare Alley - Beco das Almas Perdidas", também salienta a habilidade de del Toro "combinar e equilibrar dimensões fantásticas e míticas a par de um lado romântico, misterioso, monstruoso e negro muito estimulante". "Consegue criar uma alucinação palpável", diz o norte-americano, que nota também o investimento nas personagens. "O amor por elas é tremendo e é isso que torna este filme especial. Impressiona-nos com o mundo que criou mas deixa-nos completamente dedicados às personagens".
Rooney Mara, cuja personagem se torna especialmente próxima do protagonista, revela que o realizador lhe escreveu a biografia da mulher que interpreta no filme. "Foi quando a li que tudo fez sentido para mim. Havia lá tantos pormenores que podiam parecer insignificantes para alguns, mas que a meu ver fazem com que uma pessoa se torne real".
"Penso que ele é alguém muito versado na história do cinema, apaixonado por simbologias e pelas potencialidades das formas de se contar uma história", sintetiza Dafoe. "Isso não é para qualquer um. Tem um talento especial".
Embora não tenha estado envolvido em "Nightmare Alley - Beco das Almas Perdidas", Martin Scorsese também concorda. O realizador de "Taxi Driver" é um dos grandes admiradores iniciais do filme, como assumiu num artigo publicado há poucos dias no jornal Los Angeles Times. "Todas as personagens deste filme estão a sentir dor a sério, uma desilusão espiritual com raízes na vida diária. Isto não é apenas uma questão de 'estilo' ou 'visuais', que efetivamente são magníficos. Trata-se do compromisso total do Guillermo com o material", garante.
"Perturbador, mas ao mesmo tempo emocionante. É isso que a arte pode fazer", elogia o cineasta, que deixou um apelo aos espectadores. "Se decidiu simplesmente arquivar 'Nightmare Alley' como 'cinema negro' ou outra categoria, peço-lhe que pense melhor. E se decidiu ignorá-lo completamente, por qualquer razão que seja, por favor reconsidere. Resumindo, o que estou a tentar dizer é que um cineasta como o Guillermo, que nos deu filmes criados com tanto amor e paixão, não precisa só do nosso apoio: ele merece-o". A partir desta quinta-feira, cabe ao público português aderir ou não ao repto.
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