A caminho dos
Óscares 2024
"Por que aceitar que esta arte que nos une seja usada como disfarce para o tráfico ilícito de meninas?", questionou Judith Godrèche no palco dos César.
“É preciso ter cuidado com as meninas, elas atingem o fundo da piscina, magoam-se, mas recuperam”, acrescentou, apelando às vítimas para acreditarem.
A 49.ª edição dos prémios da Academia de Cinema Francesa, equivalentes aos Óscares, na sexta-feira na histórica sala Olympia, foi marcada pela alta tensão, com vítimas de violência sexual e de género na indústria à espera que o evento fosse um marco.
A questão surgiu de imediato nas palavras introdutórias da atriz e realizadora Valérie Lemercier, que 'presidia' à noite que consagrou "Anatomia de uma Queda" como o Melhor Filme e mais cinco prémios.
“Não sairei daqui sem elogiar aqueles que estão a abalar os hábitos e costumes de um mundo muito antigo onde os corpos de uns estavam implicitamente à disposição dos corpos de outros”, frisou.
Era muito aguardada a (anunciada) participação de Judith Godrèche, que discursou na primeira hora da cerimónia sobre violência sexual e o silêncio e cumplicidade de décadas na indústria cinematográfica francesa, que parecia imune ao impacto do movimento norte-americano #MeToo.
Já fragilizados por declarações e comportamentos misóginos de Gérard Depardieu, agravadas por queixas na justiça de várias mulheres por violação, os alicerces do muro de silêncio abanaram ainda mais últimas duas semanas após a atriz, atualmente com 51 anos, ter acusado os prestigiados realizadores Benoît Jacquot (atualmente com 77 anos) e Jacques Doillon (79) de a terem violado quando era adolescente na década de 1980.
Esta nova onda de acusações é acompanhada em segundo plano pelas atrizes Isild Le Besco e Anna Mouglalis.
No início de um discurso de quase seis minutos, a atriz reconheceu: "É complicado estar à frente de todos vocês esta noite. É um momento engraçado para nós, não é? Um fantasma das Américas [#MeToo] vem arrombar a porta blindada. Quem teria imaginado?".
A atriz foi ovacionada de pé, mas as suas palavras sobre o “nível de impunidade, negação e privilégio” da indústria, soaram como uma acusação coletiva.
"Já há algum tempo as palavras ficaram mais soltas, a imagem dos nossos pais idealizados foi manchada, o poder parece estar quase a oscilar. É possível que possamos enfrentar a verdade? Assumir as nossas responsabilidades? Ser os atores, as atrizes de um universo que se questiona? Já falo há algum tempo, falo há algum tempo mas não vos consigo ouvir. Ou mal vos oiço. Onde estão? O que dizem?", disse.
"Sei que dá medo: perder subsídios, perder papéis, perder o vosso trabalho. Eu também tenho medo", admitiu.
"Estamos na alvorada de um novo dia. Podemos decidir que os homens acusados de violação parecem de ser os que tomam decisões no cinema. Isso define o tom, como se costuma dizer. Não podemos ignorar a verdade porque não se trata da nossa criança, do nosso filho, da nossa filha. Não podemos ter um tal nível de impunidade, negação e privilégio que faça com que a moralidade passe por cima das nossas cabeças. Devemos dar o exemplo também”, clamou.
A atriz referiu ainda as duas mil pessoas que lhe enviaram o seu testemunho em quatro dias: "Sabem, para acreditarmos em nós mesmos, ainda precisamos que acreditem em nós".
Godrèche tornou-se companheira de Jacquot depois de filmar "Les mendiants" sob a sua direção em 1986. A jovem foi morar com ele aos 15 anos, sem que seus pais alegadamente se opusessem. Ele tinha 39 anos.
Nessa época, ela também filmou sob a batuta de Doillon, a quem acusa de comportamento abusivo.
Os dois cineastas negam as acusações e Jacquot assegura que era ele quem estava sob o "poder" de uma atriz ambiciosa.
A relação entre Godrèche e Jacquot foi vivida perante os olhos da opinião pública, durante seis anos, e em particular do cinema e da televisão franceses, onde atuavam.
Antes da cerimónia dos César, cerca de uma centena de pessoas manifestaram-se em frente ao teatro onde decorreu o evento, a pedido do sindicato CGT, para apoiar as vítimas.
“Todos juntos podemos realmente ajudar as coisas a mudar, um mundo verdadeiramente melhor pode abrir-se”, declarou a atriz Anna Mouglalis, que acusou os realizadores Philippe Garrel e Jacques Doillon de a terem agredido sexualmente.
Ainda antes da abertura das festividades, a ministra da Cultura francesa Rachida Dati, também presente, criticou uma “cegueira coletiva” que “durava há anos” no setor do cinema, em entrevista à revista Le Film French.
“A liberdade criativa é total, mas aqui não estamos a falar de arte, estamos a falar de crimes infantis”, referindo-se a Judith Godrèche.
Da acusação de violação e agressão sexual de Gérard Depardieu às acusações feitas por Judith Godrèche, seguida de outras atrizes, a violência sexual assombra o cinema francês mais do que nunca.
O ator Aurélien Wiik lançou a 'hashtag' #MeTooGarçons na rede social Instagram esta quinta-feira.
Comentários