A caminho dos
Óscares 2024
Com seis prémios em 11 nomeações, "Anatomia de uma Queda", de Justine Triet, foi o grande vencedor da 49.ª edição dos César, os prémios da Academia de Cinema Francesa equivalentes aos Óscares, entregues na sexta-feira à noite em Paris, durante uma cerimónia sob alta tensão, com vítimas de violência sexual e de género na indústria à espera que o evento fosse um marco.
Nos cinemas portugueses desde 1 de fevereiro (ao contrário de outros premiados, inéditos ou apenas vistos na Festa do Cinema Francês), o filme de duas horas e meia conta de forma sóbria a história de uma escritora alemã que tenta provar a sua inocência depois de ser acusada pelo assassinato do seu marido francês, com a Justiça obrigada a dissecar a vida de uma família reclusa na cidade remota nos Alpes em busca da verdade.
"Gostaria de dedicar este César a todas as mulheres, às que se sentem presas nas suas escolhas, na sua solidão, às que existem demais e às que não existem o suficiente, às que têm sucesso e às que fracassam, e finalmente às que foram magoadas e às que se libertaram a si mesmas ao falar. E às que não o podem fazer", disse Justine Triet ao receber o último prémio.
"Devo agradecer aos meus produtores, que me permitiram fazer este filme com muita liberdade. A liberdade de não procurar corresponder a nenhum padrão narrativo formal do género moral, de sempre experimentar profundamente. Esta é a única coisa que me interessa, de facto, ao fazer filmes. Tentámos tocar em algo verdadeiro, sempre valorizando a imperfeição, a ambiguidade e a complexidade. E esta liberdade é o que há de mais precioso para mim, porque é a única forma de fazer filmes que sejam protótipos", concluiu.
Além do César de Melhor Filme, houve ainda distinções para Realização, Atriz (Sandra Hüller), Ator Secundário (Swann Arlaud, pelo papel do advogado de Sandra e seu amigo) Argumento Original (Triet com os eu companheiro Arthur Harari) e Montagem para o vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e que está na corrida a cinco Óscares a 10 de março.
Aos 45 anos, Triet também fez história ao tornar-se apenas a segunda cineasta nos César a ganhar Melhor Realização, um quarto de século após Tonie Marshall por "Vénus beauté (institut)", na cerimónia de 2000.
"Gostaria de agradecer primeiramente às minhas queridas atrizes. Estou a pensar em Laetitia Dosch, com quem comecei [em "A Batalha de Solférino", de 2013]. Penso em Virginie Efira [protagonista de "Na Cama Com Victoria", de 2016, e "Sibyl", de 2019]. Adoro-te. Penso também em Adèle Exarchopoulos ["Sibyl"], que adoro tanto. E Sandra, que está neste. Obrigado por me darem um pedaço das vossas vidas. Ser a segunda mulher na história dos César a obter este prémio em quarenta e nove anos não é pouca coisa. É um pouco assustador e incrível ao mesmo tempo. Dá-nos esperança para o futuro. Esperamos muito que sim", descreveu.
Já as esperanças portuguesas ficavam por conta de “Interdito a Cães e Italianos”, de Alain Ughetto, coprodução entre nove produtoras de França, Itália, Suíça, Bélgica e Portugal, através da Ocidental Filmes, mas o César de Melhor Longa-Metragem de Animação foi atribuído a “Linda veut du poulet!”, de Chiara Malta e Sébastien Laudenbach.
Presidida pela atriz e realizadora Valérie Lemercier, a cerimónia na histórica sala Olympia cumpriu a tradição de levar o seu tempo para entregar 24 prémios competitivos e dois honorários (aos cineastas Agnès Jaoui e Christopher Nolan): começou às 20h49 locais (quatro minutos de atraso) e prolongou-se até depois da meia-noite.
"Reino Animal", o aclamado filme de Thomas Cailley que acompanha pai e filho que vivem num futuro próximo onde os humanos começaram a transformar-se em criaturas animais e liderava com 12 nomeações (uma proeza para o género fantástico), dominou a primeira metade da cerimónia, mas ficou por cinco prémios em categorias técnicas: Fotografia, Banda Sonora, Guarda-Roupa (a primeira vez na história dos César que o vencedor não foi um filme histórico ou de época), Efeitos Visuais e Som.
Frustrada ficou a candidatura de Romain Duris para Melhor Ator pelo filme, a quinta em 30 anos de carreira ainda sem a máxima distinção do cinema francês: o premiado foi Arieh Worthalter, que interpretou o militante de extrema esquerda Pierre Goldman no seu segundo julgamento de um caso célebre na França dos anos 1970, dramatizado em "O Processo Goldman", de Cédric Kahn.
Já Adèle Exarchopoulos, dez anos após o César de Melhor Esperança Feminina com "A Vida de Adèle", foi eleita a Melhor Atriz Secundária por "Poder do Diálogo" ("Je verrai toujours vos visages"), uma proeza numa categoria em que a concorrência de Leïla Bekhti, Élodie Bouchez e a lendária Miou-Miou pelo mesmo filme, que dramatiza a ação da Justiça Restaurativa, que facilita diálogos entre vítimas e infratores sob supervisão de profissionais e voluntários.
"Vira-Latas", de Jean-Baptiste Durand, recebeu o César de Melhor Primeiro Filme e um dos seus atores recebeu um dos prémios mais previsíveis da noite: a Revelação Masculina foi Raphaël Quenard, um furacão que atingiu em cheio o cinema francês no ano passado, a tal ponto que também foi nomeado para Melhor Ator por "Yannick", de Quentin Dupieux, e para Melhor Curta-Metragem Documental, enquanto um dos produtores e realizadores de "L'Acteur, ou la surprenante vertu de l'incompréhension".
“Perseguir incansavelmente o objetivo de ver os seus olhos brilharem com um lampejo de orgulho”, disse o ator de 32 anos na homenagem à sua família durante o discurso que empolgou o público.
Christopher Nolan recebeu um César pela carreira após uma apresentação de Valérie Lemercier e Marion Cotillard (que trabalhou às suas ordens em "Inception" e "O Cavaleiro das Trevas Renasce"), mas o seu "Oppenheimer" na corrida a 13 Óscares foi ultrapassado na categoria de Melhor Filme Estrangeiro pela comédia romântica canadiana "Simple comme Sylvain", de Monia Chokri.
No centro das atenções, o realizador britânico ainda recebeu os currículos entregues diretamente por dois dos apresentadores, os atores e realizadores Jean-Pascal Zadi e Ana Girardot.
O Melhor Documentário foi "Quatro Filhas", que estreou esta semana nos cinemas portugueses e também concorre na mesma categoria aos Óscares, centrado na vida de Olfa, uma mulher tunisiana e mãe de quatro filhas, que vê as mais velhas desaparecerem e que, para preencher a sua ausência, a realizadora Kaouther Ben Hania recorre a atores profissionais para ajudar a revelar o que aconteceu à família.
#MeToo chegou (finalmente) aos "Óscares franceses"
"Por que aceitar que esta arte que nos une seja usada como disfarce para o tráfico ilícito de meninas?", questionou Judith Godrèche no palco dos César.
“É preciso ter cuidado com as meninas, elas atingem o fundo da piscina, magoam-se, mas recuperam”, acrescentou, apelando às vítimas para acreditarem.
A questão surgiu de imediato nas palavras introdutórias de Valérie Lemercier.
“Não sairei daqui sem elogiar aqueles que estão a abalar os hábitos e costumes de um mundo muito antigo onde os corpos de uns estavam implicitamente à disposição dos corpos de outros”, frisou.
Era muito aguardada a (anunciada) participação de Judith Godrèche, que discursou na primeira hora da cerimónia sobre violência sexual e o silêncio e cumplicidade de décadas na indústria cinematográfica francesa, que parecia imune ao impacto do movimento norte-americano #MeToo.
Já fragilizados por declarações e comportamentos misóginos de Gérard Depardieu, agravadas por queixas na justiça de várias mulheres por violação, os alicerces do muro de silêncio abanaram ainda mais últimas duas semanas após Godrèche, atualmente com 51 anos, ter acusado os prestigiados realizadores Benoît Jacquot (atualmente com 77 anos) e Jacques Doillon (79) de a terem violado quando era adolescente na década de 1980.
Esta nova onda de acusações é acompanhada em segundo plano pelas atrizes Isild Le Besco e Anna Mouglalis.
No início de um discurso de quase seis minutos, a atriz reconheceu: "É complicado estar à frente de todos vocês esta noite. É um momento engraçado para nós, não é? Um fantasma das Américas [#MeToo] vem arrombar a porta blindada. Quem teria imaginado?".
A atriz foi ovacionada de pé, mas as suas palavras sobre o “nível de impunidade, negação e privilégio” da indústria, soaram como uma acusação coletiva.
"Já há algum tempo as palavras ficaram mais soltas, a imagem dos nossos pais idealizados foi manchada, o poder parece estar quase a oscilar. É possível que possamos enfrentar a verdade? Assumir as nossas responsabilidades? Ser os atores, as atrizes de um universo que se questiona? Já falo há algum tempo, falo há algum tempo mas não vos consigo ouvir. Ou mal vos oiço. Onde estão? O que dizem?", disse.
"Sei que dá medo: perder subsídios, perder papéis, perder o vosso trabalho. Eu também tenho medo", admitiu.
"Estamos na alvorada de um novo dia. Podemos decidir que os homens acusados de violação parecem de ser os que tomam decisões no cinema. Isso define o tom, como se costuma dizer. Não podemos ignorar a verdade porque não se trata da nossa criança, do nosso filho, da nossa filha. Não podemos ter um tal nível de impunidade, negação e privilégio que faça com que a moralidade passe por cima das nossas cabeças. Devemos dar o exemplo também”, clamou.
A atriz referiu ainda as duas mil pessoas que lhe enviaram o seu testemunho em quatro dias: "Sabem, para acreditarmos em nós mesmos, ainda precisamos que acreditem em nós".
Godrèche tornou-se companheira de Jacquot depois de filmar "Les mendiants" sob a sua direção em 1986. A jovem foi morar com ele aos 15 anos, sem que seus pais alegadamente se opusessem. Ele tinha 39 anos.
Nessa época, ela também filmou sob a batuta de Doillon, a quem acusa de comportamento abusivo.
Os dois cineastas negam as acusações e Jacquot assegura que era ele quem estava sob o "poder" de uma atriz ambiciosa.
A relação entre Godrèche e Jacquot foi vivida perante os olhos da opinião pública, durante seis anos, e em particular do cinema e da televisão franceses, onde atuavam.
Antes da cerimónia, cerca de uma centena de pessoas manifestaram-se em frente ao teatro onde decorreu o evento, a pedido do sindicato CGT, para apoiar as vítimas.
“Todos juntos podemos realmente ajudar as coisas a mudar, um mundo verdadeiramente melhor pode abrir-se”, declarou a atriz Anna Mouglalis, que acusou os realizadores Philippe Garrel e Jacques Doillon de a terem agredido sexualmente.
Ainda antes da abertura das festividades, a ministra da Cultura francesa Rachida Dati, também presente, criticou uma “cegueira coletiva” que “durava há anos” no setor do cinema, em entrevista à revista Le Film French.
“A liberdade criativa é total, mas aqui não estamos a falar de arte, estamos a falar de crimes infantis”, referindo-se a Judith Godrèche.
Da acusação de violação e agressão sexual de Gérard Depardieu às acusações feitas por Judith Godrèche, seguida de outras atrizes, a violência sexual assombra o cinema francês mais do que nunca.
O ator Aurélien Wiik lançou a 'hashtag' #MeTooGarçons na rede social Instagram esta quinta-feira.
Césars 2024: a lista completa de premiados
Melhor Filme: "Anatomia de uma Queda"
Melhor Realização: Justine Triet ("Anatomia de uma Queda")
Melhor Atriz: Sandra Hüller ("Anatomia de uma Queda")
Melhor Ator: Arieh Worthalter ("O Processo Goldman")
Melhor Atriz Secundária: Adèle Exarchopoulos ("Poder do Diálogo")
Melhor Ator Secundário: Swann Arlaud ("Anatomia de uma Queda")
Melhor Esperança Feminina: Ella Rumpf ("Le Théorème de Marguerite")
Melhor Esperança Masculina: Raphaël Quenard ("Vira-Lata")
Melhor Filme Estrangeiro: "Simple comme Sylvain", de Monia Chokri
Melhor Argumento Original: "Anatomia de uma Queda"
Melhor Argumento Adaptado: "Só Nós Dois"
Melhor Longa-Metragem de Animação: "Linda veut du poulet!", de Chiara Malta e Sébastien Laudenbach
Melhor Documentário: "Quatro Filhas", de Kaouther Ben Hania
Melhor Primeiro Filme: "Vira-Latas", de Jean-Baptiste Durand
Melhor Direção Artística: "Os Três Mosqueteiros: D'Artagnan" e "Os Três Mosqueteiros: Milady"
Melhor Montagem: "Anatomia de uma Queda"
Melhor Fotografia: "Reino Animal"
Melhor Guarda-Roupa: "Reino Animal"
Melhor Banda Sonora: "Reino Animal"
Melhor Som: "Reino Animal"
Melhores Efeitos Visuais: "Reino Animal"
Melhor Curta-Metragem: "L’Attente", de Alice Douard
Melhor Curta-Metragem Documental: "La Mécanique des fluides", de Gala Hernandez Lopez
Melhor Curta-Metragem de Animação: "Eté 96", de Mathilde Bédouet
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