Sala cheia, lágrimas e aplausos do público marcaram a estreia do documentário "Traslados" ["Transferidos", em tradução literal], projetado esta semana em Buenos Aires, que conta com ritmo policial e rigor histórico a história por trás dos "voos da morte" da última ditadura militar argentina (1976-83).
"O documentário coloca as provas em cima da mesa, junta todas as peças e tudo o que se sabe desde 1976 até à atualidade sobre os voos da morte", explicou à France-Presse (AFP) o realizador do filme, Nicolás Gil Lavedra.
Os chamados "voos da morte" foram um método de extermínio de opositores implementado pela ditadura que consistia em atirar presos drogados no mar ou no Rio da Prata a partir de aviões.
Com testemunhos de sobreviventes, investigadores e referências de organizações de Direitos Humanos com material de arquivo e recriações fictícias, o filme constrói peça por peça o quebra-cabeças, desde os primeiros indícios até às decisões judiciais que comprovaram os feitos.
"Por ser um documentário de investigação, não há opiniões partidárias ou subjetivas, há factos e provas", destaca Gil Lavedra.
O realizador explica que a produção se destina especialmente ao público jovem e pessoas que não conhecem com profundidade esta parte da história, por isso adota uma dinâmica policial.
"É essencial que os jovens hoje em dia saibam o que aconteceu, o que passaram os estudantes que estudaram nas mesmas escolas que nós", disse à AFP Octavia Ortuño, de 24 anos, estudante de psicologia.
"Traslados" será exibido durante poucas semanas na Argentina antes da sua digressão na Europa, onde será apresentado em vários festivais de cinema, como o de San Sebastián, na Espanha.
Criminosos
Um dos casos principais do filme é o das fundadoras da organização Mães da Praça de Maio, Esther Ballestrino, Azucena Villaflor e María Ponce.
Juntamente com as religiosas francesas Alice Domon e Léonie Duquet, e outros sete ativistas, elas foram sequestradas e atiradas ao mar num voo realizado na noite de 14 de dezembro de 1977, segundo a reconstrução judicial.
O grupo de 12 sequestrados foi traído pelo ex-fuzileiro Alfredo Astiz, infiltrado na organização e que hoje cumpre prisão perpétua.
Víctor Fuks, espectador de de 74 anos, conta que se sentiu comovido pelo filme. Por conta da ditadura, ele fugiu para a Espanha onde morou durante 34 anos.
"Havia muitos amigos, companheiros (...) a desaparecer", explica. Ele acredita que o filme é fundamental nos dias de hoje.
Em julho, um grupo de seis deputados do partido governamental do presidente Javier Milei visitou na prisão Astiz e outros repressores condenados por crimes contra a humanidade, numa ação que foi repudiada por grande parte do espectro político da Argentina.
Em relação à visita “e à forma como foram chamados de velhos a cumprir pena numa prisão comum e que não mereciam isso, este documentário mostra que são criminosos a cumprir pena por crimes contra a humanidade, porque eram o Estado”, aponta Gil Lavedra.
O cineasta é filho de Gil Lavedra, juiz que fez parte do tribunal do emblemático julgamento das Juntas Militares em 1985, após o regresso à democracia.
Para ele, o que aconteceu durante a ditadura “tem de ser uma questão em que não deve haver polarização”.
“A única forma de superarmos esta questão é ter uma memória coletiva. Toda a sociedade tem que entender que a ditadura foi um terrorismo de Estado e todos nós temos que condená-la. A única maneira de curar essa ferida é com justiça, verdade e memória".
Durante os sete anos de ditadura, calcula-se que morreram ou desapareceram cerca de 30 mil pessoas, segundo organizações de direitos humanos.
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