"Shaken, Not Stirred" ["Agitado, não mexido"] é uma das expressões mais icónicas de James Bond, o agente secreto britânico 007 com licença para matar no cinema.

A referência é a sua preferência para o Martini, mas num movimento que parece estar prestes a agitar - e talvez até mexer - uma das sagas mais lucrativas de Hollywood, a Amazon MGM Studios vai assumir o controlo criativo de James Bond, afastando-se os produtores de longa data.

James Bond muda de mãos após mais de 60 anos: produtores de "007" passam controlo à Amazon
James Bond muda de mãos após mais de 60 anos: produtores de "007" passam controlo à Amazon
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Recebido com imediato pessimismo pelos fãs, um acordo anunciado na quinta-feira prevê que a propriedade dos direitos de 007 seja partilhada entre a gigante do cinema e os produtores e irmãos Michael Wilson e Barbara Broccoli.

A notícia chega quatro anos após o último filme, mas rodado em 2019, o 25.º da saga, que arrecadou 775 milhões de dólares, no qual Daniel Craig se retirou do papel do agente secreto, restando aos fãs preencher o tempo com especulações sobre quem o substituirá.

Sem a divulgação dos valores envolvidos (fontes falam à publicação Deadline em 'cerca de mil milhões de dólares', 960 milhões de euros, com 'partilha económica' nos filmes que se seguem), o novo acordo dá à Amazon MGM Studio um controlo que tem sido guardado de perto pela família Broccoli desde que Albert “Cubby” Broccoli e Harry Saltzman trouxeram pela primeira vez a personagem do autor Ian Fleming aos cinemas com "007 - Agente Secreto" em 1962, protagonizado por Sean Connery.

Michael Wilson e Barbara Broccoli foram firmes na defesa da personagem e da marca James Bond, resistindo a 'spin-offs', como prequelas justificativas, e licenciamentos que consideraram que poderiam manchar a saga: era uma das últimas grandes propriedades intelectuais não controladas por uma grande corporação.

Agora, com a Amazon no comando, o público pode não ter que esperar tanto tempo pelo próximo capítulo... ou pelos 'spin-offs'.

O fundador da Amazon, Jeff Bezos, não perdeu tempo a pedir opiniões.

"Quem escolheriam para ser o próximo Bond?", perguntou aos fãs nas redes sociais.

Para a revista The Hollywood Reporter, isso já é um sinal errado, recordando que a escolha de Daniel Craig para "007: Casino Royale" (2006) foi controversa e 'é difícil imaginar executivos nervosos da Amazon a fazerem uma escolha semelhante'.

Vaga de ceticismo e pessimismo

"007 - Sem Tempo Para Morrer"

A tom da reação à notícia nas redes sociais foi em grande parte de ceticismo e pessimismo, com os fãs a lamentar o que consideraram a inevitável super exploração da marca pelo rolo compressor da Amazon.

Muitos partilharam variações de “RIP James Bond” e memes de lápides e personagens da saga a morrer.

O escritor Don Winslow escreveu na rede social X (antigo Twitter) que era “Completamente de partir o coração. O FIM de uma era.”

Griffen Schiller, crítico do FilmSpeak, escreveu que 'Esta é possivelmente a PIOR coisa que aconteceu a esta saga... Será explorada até secar."

Outro utilizador previu: “A Amazon vai aqui rapar o tacho e ser o mais descarada possível”.

“NÃO ao Universo Cinematográfico James Bond”, foi outra das reações, numa clara alusão à vasta expansão das personagens da Marvel e Star Wars que pertencem à Disney.

"É um dos nossos últimos grandes eventos de cinema. Não o diluam com uma infinidade de spin-offs de streaming.", escreveu outro utilizador.

Embora as esperas ocasionalmente longas entre filmes possam frustrar os fãs, alguns lamentaram a provável aceleração do processo.

“Costumávamos ter um filme James Bond (geralmente) muito bom a cada poucos anos, mas isso agora acabou. Preparem-se para o 'Jovem Q' e '00 Origens: Trevelyan' e outras porcarias intragáveis da Amazon Prime”, escreveu Mike Beauvais.

A Hollywood Reporter recorda que o ceticismo é habitual sempre que uma saga venerada muda de mãos, mas aqui tem justificação, já que há quatro anos a Amazon gastou 8,45 mil milhões de dólares para comprar a MGM, muito por causa da ligação com Bond, mas que, como só tinha 50%, era um sócio passivo nas escolhas artísticas.

É recordado o caso de "Citadel": quase 300 milhões de dólares gastos numa série de espionagem britânica internacional ao estilo de Bond, concedida como uma saga instantânea com diferentes 'spin-offs' para vários países e personagens que acabariam por se juntar, ao estilo dos Vingadores. Ou seja, primeiro foi criado o plano de conteúdo global e só a seguir se avançou para escrever uma série que se adaptasse a essa visão, o que não costuma dar bons resultados narrativos.

Destaca-se ainda que um dos protagonistas era Richard Madden, uma escolha óbvia e segura do estúdio após ter feito a série da BBC "Bodyguard", que levou os fãs a dizer que devia ser o próximo 007 (e é isso que se teme ser o sinal com a publicação de Jeff Bezos, um concurso de popularidade).

"Jack Ryan" e "Reacher" exploram as obras de Tom Clancy com qualidade, mas, nota a revista, parecem o que são: TV. E outra propriedade intelectual que a Amazon conquistou, "Os Anéis do Poder", a prequela de "O Senhor dos Anéis", tem dividido os fãs, embora ainda faça bons números de streaming.

Uma investigação 'bombástica' publicada em dezembro pelo jornal Wall Street Journal revelava que a saga estava num impasse por causa do colapso da relação entre a família Broccoli e a Amazon. Barbara terá descrito os executivos como uns 'grandes idiotas' (no original, um muito mais explícito 'fu***** idiots') e ficado 'indignada' quando se referiram com desdém a James Bond como 'conteúdo'.

O artigo também revelava o desejo da Amazon de fazer spin-offs televisivos baseados na personagem Moneypenny ou talvez de uma versão feminina do 007.

Segundo o Deadline, as pessoas próximas de Broccoli e Wilson ficaram 'chocadas' com a cedência ao estúdio.

“Ela é uma lutadora, mas cansou-se de lutar”, resume uma fonte. Outra reconhece que foi uma 'decisão emocional' e que não ia continuar sozinha após a reforma do meio-irmão, com 83 anos, mais 19 do que a produtora.

A publicação cita o lamento de um executivo sénior do cinema britânico: “Sem a supervisão cuidadosa da Barbara, Bond torna-se simplesmente Jack Reacher numa série qualquer”.

Nota a análise da Hollywood Reporter: "A Amazon, compreensivelmente, dá prioridade ao seu serviço de streaming (veja-se como se recusou a ceder à pressão para lançar a sua nova versão de 'Road House' nos cinemas no ano passado). O que não quer dizer que não vá lançar um filme Bond nos cinemas – manter Bond exclusivo da Prime Video parece muito improvável, embora não impossível. O ponto principal é que a Amazon não é uma empresa que pareça dar valor ao cinema e não tem uma longa experiência na criação de cinema, como uma empresa que faz o próximo filme de Bond idealmente deveria ter".

Jeff Bock, um analista da Exhibitor Relations, defendeu o acordo.

“Este é o próximo passo lógico para a saga Bond. 007 é a joia da coroa do catálogo da Amazon e a sua melhor esperança – em termos de propriedade intelectual – para um sucesso contínuo nas bilheteiras. Com a velha guarda, para o bem ou para o mal, as produções demoravam muito a incubar. Isso simplesmente não funciona no mercado do cinema de hoje”, disse à Variety.

À mesma revista, Eric Handler, analista sénior da Roth Capital Partners, olhava para o potencial futuro.

“Pode-se realmente realmente reimaginar esta saga. Agora, a Amazon talvez possa permanecer num caminho linear com os filmes, mas talvez crie uma série de streaming sobre Moneypenny ou conte uma história de origem sobre o Q. Ter a personagem de Ana de Armas do ‘007 - Sem Tempo Para Morrer' a aparecer num filme à parte? Tudo é possível.”, nota.

No entanto este analista diz que a preocupação mais imediata é determinar quem preencherá o vazio deixado pela família Broccoli, que tenha o mesmo papel que Kevin Feige na Marvel, Kathleen Kennedy com "Star Wars" ou James Gunn e Peter Safran nos filmes da DC.

“É preciso ter alguém no topo que tenha uma visão de para onde querem ir com a saga", diz.

É uma responsabilidade que dificilmente será entregue a Jennifer Salke, presidente executiva da Amazon MGM Studios, que se acredita ser a voz por detrás da citação incendiária no artigo do Wall Street Journal 'Não acho que o James Bond seja um herói' e alegadamente nem terá visto nenhum dos filmes pré-Daniel Craig.