
Dedicada ao tema Identidade, Memória e Fronteira, a 11ª. edição do MDOC, decorrida entre 28 de julho e 3 de agosto em Melgaço, apostou em mais de 30 filmes de mais de 20 países em formatos de curta, média e longa-metragem - todos com sessões de entrada livre.
Entre os documentários merecidamente premiados, destacaram-se "Cutting Through Rocks", do casal Sara Khaki e Mohammadreza Eyni, iranianos radicados nos EUA, crónica de uma mulher numa luta ingrata contra um sistema patriarcal, ou "My Memory Is Full of Ghosts", do palestiniano residente na Síria Anas Zawahri, olhar melancólico e abrangente sobre o pós-guerra em Homs.

Passando por Melgaço sem galardões no festival minhoto (apesar de ter ganho o Grande Prémio do Júri em Sundance, entre outros) "Mr. Nobody Against Putin" dificilmente sairá tão cedo, no entanto, da memória de quem o viu. Até porque este retrato comunitário feito a partir de uma escola é dos poucos sobre o quotidiano russo dos últimos anos a que o público ocidental terá acesso (ainda que limitado, já que não se conhecem planos para a distribuição do filme no circuito comercial português).
Conduzido pelos relatos de Pavel Talankin, videógrafo de uma escola de Karabash ("a cidade mais tóxica do mundo, na qual a esperança média de vida ronda os 38 anos", descreve), "Mr. Nobody Against Putin" arranca com um tom de comédia leve, até algo tosca, moldada por algum humor autodepreciativo. Mas o dia-a-dia destes professores e estudantes vai perdendo a graça quando o ambiente pacato da localidade mineira cede aos avanços do totalitarismo - e de forma abrupta, após a invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022.

Talankin, que é correalizador do documentário, acaba por ter uma tarefa peculiar quando a sua rotina laboral se transforma subitamente: filmar as novas atividades tornadas rituais, sejam os alunos a cantar o hino russo todas as manhãs ou a participarem em ações extracurriculares impostas pelo governo que roubam tempo a um ensino já de si insuflado de "factos alternativos" quando o tema é a história da Rússia (e em especial a guerra na Ucrânia).
"Os vossos professores foram obrigados a dizer isto", dispara o videógrafo a certa altura, deixando colegas (ainda mais) constrangidos e alunos desconfiados. "Estou estafado com tantas horas extra de propaganda", confessa aos espectadores quando "Mr. Nobody Against Putin" se encaminha para territórios do thriller paranoico, mesmo que nunca chegue a perder o sentido de humor. Mas se ainda dá para rir quando um professor militarista ganha o prémio de melhor docente da escola (nada menos do que um apartamento luxuosíssimo), o absurdo de ver o Grupo Wagner, rede de mercenários russos, ser convidado para uma aula, estará mais perto do cinema de terror.
Quando os alunos passam a ter lições sobre utilização de armas ou a participar em concursos de granadas, Talankin decide levar a subversão mais longe. Já não basta substituir o hino russo pelo norte-americano (cantado por Lady Gaga) numa manhã, exemplo da sua sabotagem pontual a uma nova ordem nacional. "Adoro o que faço, mas não quero ser um peão do regime", sublinha, até porque a tragédia na Ucrânia começa a chegar aos seus antigos alunos, convocados para uma guerra da qual muitos não voltam.

Um dos aspetos mais interessantes e conseguidos de "Mr. Nobody Against Putin" é a forma como retrata esta sensação de perigo crescente e descontrolado, assim como as reações nada homogéneas da comunidade (escolar e não só) à invasão russa. Talankin é manifestamente contra o apelo bélico e essa frontalidade não demora a tornar-se problemática, tanto para o exercício da sua profissão como para a sua segurança pessoal. Mas o filme também dá voz a terceiros, com posturas menos óbvias e que traduzem nuances raramente captadas da realidade russa atual que nos chega pelos telejornais.
Se o videógrafo também teve de ser complacente, pelo menos em parte (ainda que contrariado), com este estado de coisas, o facto de aproveitar parte das suas filmagens diárias na escola para o documentário que criou com o dinamarquês David Borenstein é uma tremenda ironia do destino, resultado de um gesto inconformado e corajoso como poucos. Mesmo que, no final, Talankin se tenha visto obrigado a abandonar a escola, a cidade e o país que amava. Felizmente, o seu pequeno milagre cinematográfico também tem agora porta aberta para o mundo...
O SAPO Mag viajou a Melgaço a convite da organização do MDOC.
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