Kafka não foi, infelizmente, dos mais crédulos na qualidade da sua própria obra: os historiadores estimam que tenha destruído 90% dela - e, se “O Processo”, “O Castelo” e “América” ainda estão disponíveis, foi porque o executor do seu testamento recusou-se a cumprir a ordem final do falecido.
Homem pacato e metido em trabalhos burocráticos que somente lhe deixavam as horas vagas para escrever, o que fazia febrilmente, Kafka foi daqueles artistas que jamais imaginou a importância que viria a ter para a literatura mundial. Morto precocemente de tuberculose com apenas 40 anos, o seu trabalho só veio a ser descoberto depois da II Guerra Mundial. “A Metamorfose”, publicada numa revista em 1915 sem obter maior impacto, não foge à regra.
Sentenças
O conto inicial de “Punições”, “A sentença”, trata a aparentemente inocente decisão de um pequeno comerciante de escrever uma carta para o seu amigo que vive em São Petersburgo - algo que toma as mais variadas dúvidas do protagonista antes de a história ter uma curiosa reviravolta quando o pai do narrador entra em cena.
“Na Colónia Penal”, que encerra “Punições”, Kafka narra a estranha convivência entre personagens sem nome numa terra também não-nomeada - e onde um Oficial de uma colónia penal mostra com riqueza de detalhes ao Visitante uma máquina de tortura cuja execução do condenado é calculada para levar 12 horas até à sua morte. A demonstração ao Visitante inclui uma execução “in loco”. A descrição é fria e objetiva, no melhor estilo de Edgar Allan Poe.
Kafka concebeu o projeto “Punições”, nunca efetivado, com estes três contos por achar que faziam sentido tematicamente. No primeiro caso, a punição vem do pai, no segundo do Estado e, em “A Metamorfose”, de algo mais sutil que pode ser a própria condição humana.
A Metamorfose
As célebres palavras que abrem essa terrífica história de Kafka são fartamente conhecidas: “Quando, uma manhã, Gregor Sansa despertou de sonhos inquietos, achou-se na sua cama transformado num bicho gigantesco”.
O que segue a partir daí é um pesadelo com um pé no realismo fantástico (Sansa aceita o seu destino absurdo como natural), e no terror - onde o leitor é confrontado com a simultaneidade de uma extensa repulsa (graças as vívidas descrições do escritor da forma como Gregor lida com o seu novo corpo) em simultâneo com a empatia dedicada à uma vítima não particularmente má em luta contra o seu aberrante infortúnio.
Asco e claustrofobia
Dezenas de análises têm-se debatido sobre os mais variados aspetos do conto, que evolui na relação entre Gregor e a sua família, tomada também ela pelo asco, pelo desespero mas, também, pelo reconhecimento de que aquele “bicho” que arruína as suas vidas é, de alguma forma, o antigo Gregor. A história é narrada pelo próprio Gregor, cuja perspetiva se desenvolve não apenas dentro da sua mente como no espaço claustrofóbico que passa habitar - o do quarto, ainda que com vista da janela.
A família não é, de todo, um elemento superficial da história - tal como a dimensão rasca da sobrevivência: era Gregor, afinal, quem mantinha o pai “reformado” depois da bancarrota de um negócio, tal como a mãe e a irmã ociosas no lar. Da mesma forma, ele era um caixeiro-viajante existencialmente miserável, que sofria com a opressão do patrão e que vivia para os pequenos dividendos duramente obtidos.
Corpo deformado e corpo são
Dentro das possibilidades, o caráter abjeto de Gregor pode ser uma representação de toda uma existência baseada na opressão económica, no utilitarismo familiar e, em última análise, na materialização da forma como esse homem sem uma autoestima particularmente elevada (um simulacro do próprio Kafka, que numa de suas cartas falava em “sentir-se como um monstro”) se reconhecia a si próprio.
Talvez justifique essa leitura o trecho final, quando o destino de Gregor é aceite e a família deposita as suas esperanças renovadas na sua irmã mais jovem - que agora identificam como muito bonita e para a qual podiam, eventualmente, arranjar um bom casamento. Afinal, ao contrário da aberração que se abateu sobre o físico de Gregor, depois de um passeio e descanso no parque, “a filha foi a primeira a levantar-se e a desdobrar o seu jovem corpo”.
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