Os muitos relatos entusiastas da passagem dos Fontaines D.C. pelo festival Vodafone Paredes de Coura, este verão, já sugeriam que estava aqui um caso sério. E o regresso da banda de Dublin a palcos nacionais, agora com direito a um concerto de sala, no Sagres Campo Pequeno, provou que a química com o público português já passou da fase do flirt.
O amor está no ar? Há, pelo menos, "Romance", o quarto álbum do quinteto, editado em agosto, poucos dias depois da tal atuação memorável no festival nortenho. Muitas canções do disco já tinham, aliás, subido a palco nesse espetáculo, mas a estreia lisboeta dos Fontaines D.C. em nome próprio percorreu-o quase na íntegra, deixando de fora apenas dois temas.
Tirando essa presença mais forte do longa-duração, os alinhamentos dos dois concertos foram praticamente idênticos, com o grupo a repetir as revisitações dos primeiros álbuns e limitando-se a trocar a ordem de algumas desta vez. A semelhança, no entanto, não terá sido um problema para quem não tinha visto o concerto em Paredes de Coura e também não pareceu beliscar a experiência de eventuais repetentes entre o público que se dirigiu ao Sagres Campo Pequeno esta sexta-feira.
Acolhidos de forma efusiva tanto por espectadores acabados de entrar na idade adulta (ou muito perto disso) como por outros que viveram o pós-punk em primeira mão (género especialmente caro ao grupo), os irlandeses tiveram a sala a seus pés logo à partida, ainda antes de cair o pano em palco ao som da breve faixa-título do novo disco. O coração gigante que então se viu atrás da banda, principal adereço de um concerto visualmente simples mas eficaz, fez ainda mais sentido. E nunca deixou de se avistar ao longo da hora e meia que se seguiu, sujeitando-se a mudanças de cor (juntamente com o céu estrelado com o qual partilhou o protagonismo no cenário) à medida que o desfile de canções também foi alternando ritmos e estados de alma.
Já no coração do público parece estar, pelo menos, boa parte de "Romance". Se para algumas bandas trazer novas canções a palco é uma manobra arriscada, apesar de protocolar, a adesão a estas não ofereceu resistência. Da explosiva "Death Kink" ao travo indie pop de "Favourite", a colheita mais recente foi abraçada e entoada por muitos, com tantos acessos de mosh, nas primeiras filas, ou headbanging, um pouco por todo o lado, como as anteriores. Nada mal para o que poderia ter sido um "difícil" quarto disco depois de "Skinty Fia" (2022), capítulo-chave de consolidação de uma identidade que "Dogrel" (2019) e "A Hero's Death" (2020) afirmaram ao apresentarem os Fontaines D.C. como novos heróis saídos da classe trabalhadora irlandesa.
Crítico e assertivo nesses primeiros álbuns, com cartas de amor e ódio à sua terra natal, o quinteto liderado por Grian Chatten debruça-se mais sobre a esfera amorosa em "Romance" (o título não engana), viragem temática acompanhada, a nível sonoro, por um interesse acrescido pelo rock alternativo dos anos 90 (não por acaso, o clássico "Today", dos Smashing Pumpkins, ouviu-se no Campo Pequeno antes do concerto) e inclinações shoegaze tiradas da mesma década.
O novo disco pode não ser o portento sugerido pelo primeiro single, "Starburster", cujos ecos de escolas eletrónicas e do hip-hop vinham acompanhados da escuta atenta dos Prodigy, Outkast ou Shygirl, algumas das inspirações apontadas pela banda nesta fase. Mas ultrapassado esse eventual ajuste de expectativas, é um álbum que parece crescer a cada audição, sobretudo nos acessos mais atmosféricos e hipnóticos. E cresce certamente em palco, como se testemunhou de forma mais pronunciada num shot de adrenalina como "Here's the Thing". Episódio de sintonia perfeita entre banda e público, deixou claro que algum rock não precisa de inventar nada para, ainda assim, soar vibrante e rejuvenescido - e neste caso, ser capaz de promover uma comunhão eufórica de gerações, cortesia de guitarras trepidantes, bateria vigorosa e um refrão-vendaval.
Noutro comprimento de onda, "Horseness Is the Whatness", mais um tema de "Romance", foi um convite à serenidade que convocou telemóveis em riste e a ocupar o lugar em tempos atribuído a isqueiros. Momento cintilante, promoveu o coração em palco, entretanto prateado, a bola de espelhos possível numa sala cheia de estrelas (cuidado, Coldplay). A canção também tem a particularidade de ter sido escrita por Carlos O'Connell, um dos guitarristas da banda.
Conor Curley, que se ocupa igualmente da guitarra, assinou "Sundowner", na qual se se estreou ainda como vocalista principal de um tema dos Fontaines D.C.. No concerto, Grian Chatten complementou-o como voz secundária e foi pianista numa das cenas mais oníricas (e bonitas) da noite. Logo a seguir, apresentou a banda, apelando ainda a uma Palestina livre. Porque embora "Romance" olhe mais para a esfera pessoal do que comunitária, a costela ativista do grupo não esmoreceu e teve expressão recente no EP "Ceasefire" ('cessar-fogo'), uma edição conjunta com os Massive Attack e os Young Fathers - os lucros das vendas revertem para os Médicos Sem Fronteiras em Gaza e na Cisjordânia, territórios cuja ocupação israelita é criticada pelo quinteto.
Entre as quase duas dezenas de canções levadas a palco não faltaram "Jackie Down the Line", "A Hero's Death" ou "Big Shot", esta já com pistas dos caminhos texturais que o grupo seguiria em "Romance". A imaculada "I Love You" e a robusta "Starburster", a fechar, garantiram a saída em grande depois de um concerto em que nenhuma canção esteve a mais. Mas talvez tenha tido algumas a menos, até porque um segundo encore não teria caído mal (mesmo que fosse difícil competir com a intensidade do primeiro) e "Desire", um dos melhores motivos para ir voltando ao novo disco, acabou esquecida. Ou terá sido guardada para o próximo passo desta relação de cumplicidade palpável, crescente e cada vez mais publica com os admiradores portugueses?
Nota: As fotos que ilustram este artigo foram captadas no concerto dos Fontaines D.C. no festival NOS Alive, no Passeio Marítimo de Algés, em 2022, e não no do Sagres Campo Pequeno
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