Marcelo D’Salete está de regresso a Portugal a convite do festival AmadoraBD, a propósito de uma exposição retrospetiva e para apresentar a banda desenhada mais recente, “Mukanda Tiodora”, que sairá em novembro em Portugal pela Polvo.
Nascido em São Paulo em 1979, Marcelo D’Salete cruza ficção e narrativa histórica em banda desenhada, em obras como "Cumbe" e "Angola Janga", que são fruto de um trabalho demorado de pesquisa sobre identidade, escravatura e consciência política.
O autor soma vários prémios literários, nomeadamente o norte-americano Eisner em 2018 por “Cumbe” e o brasileiro Jabuti, que lhe foi atribuído por duas vezes, em 2018 por "Angola Janga" e em 2023 por “Mukanda Tiodora”.
No festival AmadoraBD, onde está a exposição “Quilombo, Herança e Resistências”, Marcelo d’Salete afirmou, em entrevista à agência Lusa, que a banda desenhada “é uma forma de criar uma experiência narrativa e visual interessante para o leitor”.
Para o artista visual, a narração por imagens e palavras é a mais substancial, para dar a conhecer os temas que anda há duas décadas a estudar, resgatando acontecimentos do passado para entender o presente, em particular os que se relacionam com a população negra no Brasil.
“Mukanda Tiodora” é um desses casos. O livro inspira-se na história verídica de uma mulher negra, Tiodora Dias da Cunha, africana de nascimento, escravizada em São Paulo em meados do século XIX, e que procura ser livre.
Separada da família, depois de ter sido vendida, Tiodora conheceu um escravo alfabetizado a quem ditou cartas dirigidas ao marido, e nas quais deu a conhecer o seu universo particular.
As cartas sobreviveram até hoje e ajudam a contar uma outra narrativa sobre os escravos no Brasil, num período entre a independência (1822) e a abolição da escravatura (1888).
Essas cartas de Tiodora Dias da Cunha são um dos poucos registos do século XIX, de uma mulher negra a falar da sua realidade a partir da sua perspetiva, praticamente na primeira pessoa, contou Marcelo D’Salete.
A BD contraria ainda a ideia de que, no século XIX, São Paulo cresceu “a partir de uma emigração branca, europeia”.
“E não é real. São Paulo tinha um contingente de grupos indígenas enorme e um contingente de pessoas negras escravizadas e livres. Há toda uma marca indígena e afro-diaspórica importante no Brasil. […] A sua História oficial apaga essas marcas indígenas e negras”, exclamou.
No livro, Marcelo D’Salete incluiu reproduções das cartas de Tiodora Dias da Cunha, um feito inédito fora do contexto académico e que significa que a história daquela mulher negra escravizada pode chegar a mais leitores.
“É essencial que essas histórias circulem. […] Eu fico muito feliz de ver a circulação dos livros, de perceber que essas obras são importantes dentro das escolas. É um tipo de material que eu não tive acesso quando era mais jovem. Acho incrível imaginar que outros jovens podem ter esse tipo de discussão”, disse.
E é uma discussão que se junta ao debate atual, pelo menos no Ocidente, sobre colonialismo e pós-colonialismo, sobre as raízes históricas do racismo e da desigualdade.
“São cicatrizes não fechadas, são dilemas, questões sociais que começaram há muito tempo, mas que ainda repercutem. Ainda vemos as mazelas desses problemas nos dias atuais. Tratar este tema é importantíssimo, porque os males da escravidão, que é o racismo e a desigualdade social, ainda são um problema enorme e urgente no Brasil e imagino que noutros locais”, disse.
Questionado sobre uma reparação histórica pelo colonialismo, Marcelo D’Salete disse que as nações devem “sentar e decidir”.
“A gente não pode esquecer que muitas das mazelas são parte de um projeto colonialista que a Europa foi uma das protagonistas. Não que a culpa seja apenas da Europa, de Portugal, a gente sabe disso. Mas a Europa e Portugal não podem se eximir de boa parte dessas mazelas que esses países ainda enfrentam hoje. […] Acho que é, no mínimo, honesto você trazer isso a público, não se calar sobre esse problema”, opinou.
“Mukanda Tiodora” é apresentado hoje no AmadoraBD, com a presença de Marcelo D’Salete, da jornalista Sara Figueiredo Costa – que comissariou a exposição no festival – e do editor Rui Brito, que tem publicado a obra do autor brasileiro na editora Polvo.
Nesta mesma editora estão publicados os premiados “Cumbe” e “Angola Janga”, na coleção "Romance Gráfico Brasileiro", que conta com mais de trinta títulos de banda desenhada brasileira.
O festival de banda desenhada da Amadora começou na quinta-feira e termina no dia 27.
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