A história da catalã Maria Duran, que fugiu da aldeia onde nasceu em 1711, se fez passar por homem e acabou julgada – e torturada - pela Inquisição portuguesa é contada num livro do historiador François Soyer agora publicado.
No livro “A Hermafrodita e a Inquisição Portuguesa – O Caso Que Abalou o Santo Ofício”, publicado pela Bertrand com tradução de Rita Furtado, Soyer relata a história de Maria Duran, que nasceu em 1711 na aldeia catalã de Prullans, onde “foi criada como rapariga e se casou com um homem” aos 14 anos, provavelmente num matrimónio arranjado, com quem teve um filho que morreu antes de cumprir um ano.
“Quando o casamento se desintegrou, Maria fugiu da aldeia e deu início a uma nova vida itinerante. Vestida com roupas de homem, viajou para o Sul de França e para o Leste de Espanha, adotando uma identidade masculina e juntando-se, a determinada altura, ao real exército espanhol. Quando revelou o seu corpo feminino, supostamente porque queria evitar o serviço militar em Itália, o exército expulsou-a e ela foi obrigada a vestir-se como mulher”, resume Soyer.
Vinda de Madrid, chegou a uma Lisboa de cerca de 250 mil habitantes em 1738 que era uma “cidade multicultural” devido à coexistência entre “portugueses nativos (incluindo os descendentes de judeus que tinham sido forçados a converter-se ao cristianismo na última década do século XV, que se suspeitava continuarem a ser judeus, e que eram conhecidos por cristãos-novos), […] africanos negros (tanto escravizados como livres) e comunidades mercantis bem integradas, vindas de toda a Europa”.
À procura de sustento, de segurança, sem ter dinheiro nem falar português numa cidade onde havia “pobreza extrema e crime” de tal modo que o rei havia ordenado recentemente que patrulhas armadas vigiassem as ruas, Maria Duran “procurou ajuda de um clérigo piedoso”.
Dá-se assim a sua entrada numa instituição de recolhimento e, segundo a pouca informação disponível, Soyer escreve que, cinco meses depois de chegar, Maria tornou-se próxima de uma outra mulher, com quem manteve relações sexuais.
Mais tarde, já em depoimento perante a Inquisição, essa outra mulher disse acreditar que Maria era um homem, algo que se viria a repetir com outras pessoas com quem se relacionaria e que teria consequências para a forma como Maria Duran foi encarada. Por outras palavras, à época, viam-na como agente do Diabo, embora ela o negasse e se tivesse declarado sempre uma “mulher verdadeira” perante o tribunal que a julgava.
“Além das ações de Maria, as suas palavras também levaram a que várias mulheres acreditassem que ela era homem. As testemunhas apontaram para o facto de Maria não ter guardado segredo sobre as vezes em que, no passado, se travestiu, além de ter declarado que era homem ou hermafrodita na presença de muitas mulheres”, relatou o historiador.
O também professor da Universidade de Nova Inglaterra, na Austrália, realçou o “trauma da violência” na perceção de Maria Duran como um homem, uma vez que, aos olhos de um leitor atual, o comportamento da catalã seria encarado como “sexualmente predatório”.
“Maria estava disposta a recorrer a ameaças verbais ou até à violência física para coagir uma mulher a ter sexo consigo. Depois do sexo, Maria procurava acalmar as vítimas, dizendo-lhes que os atos sexuais entre ambas tinham sido heterossexuais e, portanto, ‘normais’. […] Numa cultura heteronormativa que estereotipa a sexualidade masculina considerando-a dominante e agressiva e atribuindo uma ideia de passividade à sexualidade feminina, é fácil ver a violência sexual como um fenómeno que é, na sua essência, masculino e heterossexual”, escreveu Soyer, especialista na história do antissemitismo nos primórdios da Europa moderna e da Península Ibérica em particular.
Maria Duran foi presa pela Inquisição em 1741 e submetida a múltiplos interrogatórios, tendo até sido solicitada informação adicional à congénere espanhola acerca da vida da catalã na sua terra natal.
Interrogada e torturada pela Inquisição, acaba condenada em 1744 por não ter respeitado os preceitos da sua formação cristã e por se ter comportado “de modos naturalmente repugnantes e contrários à ordem comum da Natureza”. Maria Duran foi sentenciada a ser chicoteada em público em Lisboa e expulsa de Portugal.
O caso foi mencionado na imprensa e Soyer referencia registos de um padre presente no auto-de-fé, que juntou dezenas de condenados (alguns dos quais seriam executados), que relatou o processo de Duran a um correspondente.
Ao contrário de outros casos, a Inquisição não elencou de forma completa quais os crimes pelos quais Duran estava a ser condenada: “O desejo de calar um caso embaraçoso que poderia ser motivo de troça é evidente. Não é feita qualquer menção aos elementos de natureza sexual do julgamento de Maria: nem as relações sexuais que teve com mulheres, nem as alegações segundo as quais possuiria um pénis, nem as instituições em causa [para lá de Lisboa esteve num recolhimento em Évora], nem sequer os vários exames anatómicos.”
Maria Duran teve ainda de assinar um termo de segredo, no qual se comprometia a nunca divulgar o seu processo nem mesmo aquilo a que assistiu na prisão da Inquisição.
Não há registo da existência de Maria Duran para lá de 1744.
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