Juntamente com o outono, veio também a oportunidade de conhecer uma bela e desafiadora exposição de arte. Marcia Tiburi recebeu-nos no Espaço Talante, em Lisboa, com muita disposição e simpatia, explicando ‘logo de cara’ o quanto aquele lugar era ideal para abrigar a sua ocupação artística. “O local se torna bastante adequado para esse projeto em função, também, do nexo entre esse ambiente, a literatura e a própria livraria Ler Devagar, além do fato de outros escritores, poetas e romancistas já terem exposto aqui. É um lugar bastante natural em função da própria natureza da minha obra. Para mim, era coerente que se fizesse essa mostra aqui”, explicou ao abrir um acolhedor sorriso.

Marcia Tiburi
Marcia Tiburi créditos: Hedflow

Com curadoria dos brasileiros Antonio Grassi e Ciça Castello, o Espaço Talante tem recebido uma série de exposições e eventos que exaltam artistas africanos e latinoamericanos. Marcia é mais uma mente brilhante que promete deixar a sua marca naquele lugar. “Eu vou fazer a versão daquele livro ali, que está escrito em francês, na versão em português. Vamos ter também os ‘Cafés Filosóficos’, onde ficarei aqui trabalhando nessa obra como se fosse uma longa performance no tempo”, pontuou a artista visual que também é filósofa e escritora.

Num tempo onde a disputa pela atenção das pessoas se tornou constante, principalmente depois do advento das redes sociais, é sempre um desafio conquistar e manter a concentração em qualquer tipo de atividade que tenha como propósito a busca por reflexão. Ao perguntar à Marcia Tiburi se a união da escrita com as artes visuais seria uma forma de superar essa tendência, como educadora ela surpreendeu ao elucidar as bases e os métodos empregados no projeto a partir da ‘anagramatologia’. É uma verdadeira experiência da palavra em movimento, capaz de produzir imagens que podem ser renovadas no espaço-tempo.

“Meu método é justamente esse cruzamento das gramáticas, a visual e a escrita, como se elas não fossem apenas comparáveis, mas que coexistissem uma criando a outra. Eu tenho uma figura geométrica projetiva na minha cabeça, que é a Banda de Möbius”, conta Tiburi ao acrescentar mais duas influências presentes nas suas telas: o problema da matemática contemporânea de Gödel e Escher (ilusão de ótica). “Naquele trabalho ali, tem uma citação de uma mão que desenha a própria mão. Esse é o jogo, é a questão que está levantada. Uma coisa passa pela outra. Existe uma dialética milimétrica entre as linguagens, mas também na vida, pois existem milhões de coincidências e acasos gigantescos, ou micrológicos, que já aconteceram para que essas obras tivessem sido transformadas e realizadas até chegarem no que elas são hoje”, salientou ao ponderar sobre o constante exercício de compreensão na produção de quem desenha, pinta e também escreve filosofia e romances. “Entendo ainda que as minhas obras visuais não são apenas visuais, elas são teorias pictóricas”.

Marcia Tiburi
Marcia Tiburi créditos: Hedflow

Com a excelência de uma grande artista plástica, Marcia concedeu uma pequena aula sobre um dos seus trabalhos destacados na parede. Segundo ela, 'Disjecta Membra’ é um ensaio para um escrito filosófico. O nome faz referência a fragmentos de uma obra literária que não estão necessariamente organizados de forma ‘coerente’. “É toda uma elaboração menos política, que é, digamos, o assunto mais habitual da minha vida pública. É uma estruturação menos politizada nesse sentido estrito, mas profundamente política no sentido mais ontológico, existencial e profundo desse termo”, sublinhou.

Profundidade essa que também está ligada ao exílio e não ao ‘autoexílio’, termo que, segundo Marcia, só é usado por brasileiros. “Eu demorei muito tempo para utilizar o termo ‘exílio’, porque eu mesma não saí do Brasil para ‘me exilar’, não escolhi essa condição. Eu deixei o Brasil para não morrer”, conta ao complementar que só descobriu que era uma pessoa exilada ao conviver com outros na mesma situação. “Não é um autoexílio, pois, por mim, eu viveria no Brasil”, reafirmou dividindo ainda o fato de recentemente ter comprado uma passagem para cruzar o oceano. “As pessoas sugeriram que eu não vá, muitas pessoas: familiares, amigos, figuras da política, jornalistas… Então, isso não é a condição de uma pessoa ‘autoexilada’. Eu não estou aqui porque eu quero. Aliás, eu gostaria muito que o meu país me fosse devolvido”.

Marcia Tiburi
Marcia Tiburi créditos: Marcia Tiburi

O paradoxo da democracia brasileira

Marcia Tiburi viu-se obrigada a sair do Brasil a partir de 2018, após a sua derrota nas eleições daquela altura. Disputou o governo do Estado do Rio de Janeiro pelo Partido dos Trabalhadores (PT). “E eu sempre gosto de dizer que eu perdi a eleição para os fascistas, pois nós fizemos uma campanha antifascista no Rio de Janeiro, ou seja, feita para perder… Infelizmente. Era inevitável a derrota, embora a gente tenha mantido o espírito da vitória e da luta o tempo todo, né?”. Tiburi também descreveu a situação como um momento terrível, autoritário e de muitas ameaças à sua vida. Na primeira oportunidade, a artista foi para o estrangeiro no intuito de ‘dar um tempo’. Entretanto, afirmou que “as coisas foram ficando cada vez piores”.

“Quando saí, foi através de uma instituição que protege escritores perseguidos, pois tinha uma parte da história que não estava sendo contada: a perseguição que eu vivia por parte do MBL [Movimento Brasil Livre] em 2018.” A escritora lembrou que o movimento tinha invadido praticamente todos os lançamentos de livros. Naquele momento, eram poucas as pessoas que falavam sobre esse assunto. “Hoje, quando dizem ‘tem que deixar pra lá’ ou ‘tem que fingir que esses caras não existem’, sempre digo que já fiz essa experiência de tentar fingir que eles não existem, e, não funcionou. Olha só onde é que eu estou.”, disse em tom de alerta ao frisar ser uma ‘cobaia’ da sua própria experiência. “Aquele Kim Kataguiri, por exemplo, se elegeu fazendo mistificações. E eu sou parte disso na vida dele, né? Aliás, ele me processa. O Bolsonaro também me processa. É muito curioso os seus algozes processarem você. Isso é o paradoxo da democracia brasileira, esse que também é dramático”, disse em tom de desabafo.

Outro episódio curioso, mas não menos importante, foi como Marcia deixou o país: com apenas uma mala nas mãos. Ao dividir o seu processo de imigração, a artista fez questão de recordar, mais uma vez, o quanto as suas denúncias não eram levadas a sério na altura. “Quando as coisas começaram a vir, quando o MBL se manifestou a favor do nazismo, do fascismo, as pessoas se lembraram do meu caso. Só assim eu tive a oportunidade de contar o que tinha ocorrido”.

Marcia Tiburi
Marcia Tiburi créditos: Marcia Tiburi

E foi com a ajuda da Instituição City of Asylum, criada por Henry Reese, que Marcia Tiburi partiu para o exílio. Antes de dar continuidade à sua própria história, lembrou o ataque que o escritor britânico, Salman Rushdie, sofreu recentemente em Nova Iorque. O autor é almejado desde 1988, quando publicou ‘Os Versículos Satânicos’, livro considerado uma afronta ao Islão pelas autoridades iranianas.

“Trinta e tantos anos depois de fundar essa instituição tão importante, em um lugar totalmente isento, o Salman foi atacado daquela maneira e quase morreu. E o Henry também foi atacado e levou uma facada. Tem muita coisa que fica por trás e ninguém fica sabendo. Mas, agora a gente já consegue contar um pouco mais a história.”, pontuou enquanto gesticulava com as mãos ao explicar ainda a falta de percepção das pessoas em relação ao crescimento do fascismo no Brasil.

“Agora, depois que tanta gente foi morta ou que se exilou, a sociedade começou a entender que eu e o Jean [Wyllys] fomos os primeiros. Saímos na mesma época e não contamos um para o outro. Um dia ele me ligou para dizer que não iria voltar. Respondi: eu já saí. Ele estava na Europa e eu nos Estados Unidos”, recordou.

Marcia Tiburi
Marcia Tiburi créditos: Hedflow

A beleza que confronta o fascismo

Marcia Tiburi também falou sobre a sua temporada em Pittsburgh, nos EUA. Ao falar da vivência em terras álgidas, a escritora afirmou que usou a solidão do momento para questionar o que vinha pela frente e o quanto a sua formação em artes poderia ser útil para superar dias tão difíceis. “Eu saí de casa com uns lápis e eu já tinha começado com aquele trabalho lá, que foi muito demorado. Fui pedir uma bolsa de artista, a qual só acabei recebendo em 2020.”, contou apontando para a obra ‘Disjecta Membra’ do outro lado da sala. “Naquele momento, quando fui a Paris visitar o meu ex-marido [que estava lá a fazer um pós-doutoramento], acabei encontrando colegas de universidade. Sabendo sobre o meu caso, me convidaram para ser professora da Paris 8, onde estou até hoje”.

Foi em 2021 que Marcia Tiburi aproveitou para desenvolver todo esse projeto que cruza três universos: literatura, filosofia e artes visuais. “O conteúdo inicial, em termos de assunto e tema nos quais trabalhei, foi algo que chamei de ‘Alegorias da Colonização’. Como eu tinha escrito um romance sobre uma mulher que sobreviveu à ditadura brasileira, intitulado ‘Sob os Pés, Meu Corpo Inteiro’ (2018), fui para a França. E no meio dessa ‘ocupação artística’, me veio a ideia de fazer uma versão visual desse romance. A partir daí começaram a surgir diversas obras… Todas, de uma maneira ou de outra, têm a ver com questões relacionadas à ditadura e à colonização”, explicou ao indicar outras três obras em destaque na exposição: ‘Complexo de Vira-lata’, ‘Os Comedores de Ouro’ e uma tela que faz referência à capa do livro ‘Um Fascista no Divã’, que também é uma peça de teatro. “Esse outro aqui, ‘Quatro Passos Sobre o Vazio’ é de um conto onde o narrador é o cara que faz o relatório da tortura. A tarefa dele é a de ficar observando as vítimas depois dos procedimentos, só que em um tempo distópico.”

Com uma exposição maior em Paris (aproximadamente 30 obras a mais), Marcia afirmou ter trazido a Lisboa os trabalhos que têm mais que ver com a literatura e a escrita, algo que liga Brasil e Portugal de forma efetiva. “Sim, liga muito. A língua, a palavra e o texto. Sem dúvidas!”, concordou a artista ao discorrer sobre o quanto essa ocupação também dialoga com a resistência e com a sua própria sobrevivência psíquica. “Num tempo de tanto horror no nosso país e nas vidas de cada um de nós (na minha em particular), dar uma resposta bonita e simbólica a essa catástrofe também era muito essencial para mostrar que estamos vivos e que somos maiores do que tudo isso. Enquanto Bolsonaro praticava o grotesco, que é a grande tecnologia política desses personagens todos, e, enquanto o Brasil se afoga no grotesco, eu quis e continuarei respondendo com beleza. Diante de tanta feiura, a beleza é política.”

Marcia Tiburi
Marcia Tiburi créditos: Marcia Tiburi

O futuro da cultura no Brasil

Ao falar sobre figuras consideradas picarescas, inevitavelmente chegamos ao tema Alexandre Frota, ex-deputado federal por São Paulo que, neste mês, chegou a ser indicado para ocupar um cargo no setor da Cultura durante o período de transição do próximo governo Lula. O ator, que é lembrado como voz ativa na ascensão do bolsonarismo, recusou o convite dias depois alegando ataques pessoais e à sua família. “Fui a primeira a criticar com veemência. Evidentemente, quando me manifestei, fui ultra atacada. Inclusive, por muitos companheiros do PT. A partir daí, fiquei me perguntando como é possível defenderem o Alexandre Frota do que a mim, que sou companheira deles. O que é o ‘esquerdo machismo’, né?!”, ressaltou afirmando que espera que essas mesmas pessoas “engulam seu machismo”.

Descrevendo a vergonha que sentiu ao receber a notícia de que Frota era um dos indicados, Marcia Tiburi não exitou em demonstrar o quanto essa decisão era “insuportável”, principalmente para os trabalhadores, os quais foram perseguidos por ele enquanto aliado de Bolsonaro. “Ele atacou a Eleonora Menicucci, a mim, ao Jean Wyllys e mais um bando de gente. Ele deu um soco em uma funcionária do MAM [Museu de Arte Moderna de São Paulo], atacou Wagner Schwartz e outros artistas, mas atacou também várias pessoas anónimas”.

Em 2017, Alexandre Frota chamou Wagner Schwartz de “vagabundo” e entrou com uma representação no Ministério Público contra uma polémica performance do coreógrafo realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo. No ano seguinte, Frota foi eleito deputado federal com mais de 150 mil votos pelo PSL, o mesmo partido de Bolsonaro naquele momento. No último pleito, já em oposição ao atual governo que ele próprio ajudou a construir, o ator não conseguiu ser reeleito. Para Tiburi, esse é um legado que não pode ser esquecido, principalmente por aqueles que vêm lutando contra essa ‘criminalização’ da classe artística no Brasil.

Marcia Tiburi
Marcia Tiburi créditos: Marcia Tiburi

"Alexandre Frota é um desqualificado, um machista oportunista. Sujeito que, junto com o MBL, foi um dos personagens mais importantes daquele período, sendo eleito na onda do bolsonarismo. Eu não poderia ficar quieta e não ficarei. Ele é uma figura incapaz de ocupar qualquer cargo no campo da Cultura, porque ele nos envergonha profundamente. Na qualidade de pessoa livre, de espírito livre e como pensadora que vive e paga o preço por falar a verdade em relação a um país onde as pessoas constantemente apoiam a hipocrisia, digo o que realmente penso sobre ele sem nenhum medo ou vergonha”.

Questionada sobre quem gostaria de ver à frente pela reconstrução do Ministério da Cultura, Marcia Tiburi respondeu sem hesitar: “eu escolheria uma mulher!” Sem citar nomes, ela justifica que existem, no mínimo, umas trinta mulheres entre artistas, professoras e militantes feministas aptas a assumirem essa responsabilidade.

“Tem muita gente boa no Brasil. Aliás, é por isso que o Brasil continua em pé. Porque existem ativistas, mulheres políticas… E para falar do campo da Cultura em específico, existem muitas que possuem atuações incríveis”.

A desnazificação do Brasil como princípio

Já em tom de despedida, perguntamos a Marcia Tiburi como devemos iniciar a desnazificação do Brasil. Mesmo que se trate de um assunto complexo e sem respostas prontas, ouvir a opinião de quem trabalha com a arte e com a educação talvez seja um bom ponto de partida para a reconstrução do país. “Acho que existem instâncias de atuações diferentes. De qualquer maneira, a gente precisa ter um governo que trabalhe a partir de princípios, e a desnazificação tem que ser metodológica”.

Para Tiburi, ter isso como meta é importante para que o fascismo não se repita e que esse processo de ‘nazificação’ deixe de avançar.

“Realmente é preciso criar um plano de desmontagem, por exemplo, das células nazistas. Por um lado, é necessário atuar a médio e longo prazo com um projeto de educação nacional consistente em relação a esse tema, o que inclui lutar para construir uma Educação antirracista. O antifascismo implica o antirracismo, a anti-misoginia, o anti-capacitismo, enfim… É toda uma produção de Educação para a democracia junto com uma cultura para a democracia”.

Por outro ângulo, Marcia Tiburi também vê a necessidade de se criar uma Secretaria de des-fascistização do país ligada diretamente ao governo, capaz de transitar de maneira interdisciplinar entre os Ministérios e operar de maneira específica.

“Não dá para simplesmente deixar ‘correr solto’. Tem que chamar a Adriana Dias [antropóloga e especialista em estudos do nazismo no Brasil] e várias pessoas importantes que possam percorrer entre os campos, porque será preciso atuar na Educação e na Cultura, o que é óbvio, mas também na Comunicação, na Saúde”, finalizou lembrando ainda que diversos médicos e demais profissionais vêm tendo comportamentos muito parecidos com aqueles praticados na Alemanha nazista. “É um trabalho longo, mas que precisa ser feito”.

A exposição ‘Ensaio de Escrita’ fica em cartaz até o dia 15 de janeiro no Espaço Talante, no andar superior da Livraria Ler Devagar, em Lisboa.