Acompanhado por Bem, José, João e Flor, Gilberto Gil iniciou a sua viagem pelo Coliseu de Lisboa ao cantar a canção “Expresso 2222”. Durante duas horas e meia, Gil, filhos e netos criaram uma espécie de “milagre do ser feliz”na noite de 30 de outubro de 2023. Sabendo que isso de milagre só pode partir de divindades, o músico apareceu no meio das luzes coloridas que iluminavam o palco.
Uma entidade que canta em “Viramundo” a vontade de que o faminto tenha festa, trabalho e pão a seguir. E claro, sendo divino, não esquece do “Upa, neguinho”, música que lembrou ser o primeiro sucesso da “gloriosa intérprete brasileira” Elis Regina.
Não imagino nenhum mortal que não tenha recebido um toque divino naquele exato momento, daqueles que arrancam um sorriso do mais desesperançado.
Mas isso de ser gente e “luz” na mesma vida, fez Gilberto Gil conhecer o que chamou de “espécie de exílio” enquanto recordava de como tinha composto a música “Ladeira da Preguiça”, tema que também fez sucesso na voz de Elis. Eram os primeiros dias forçados em Londres. Tinha saudades de casa. Afinal, seres iluminados sentem saudades.
“Um Luxo Só” veio a seguir. Nada de pecado aqui, pois ele pode. E com a presença da família em palco, pode ainda mais.
Antes de tocar “João Sabino”, Gil conta que foi uma homenagem ao pai do amigo e contra-baixista da sua banda, Rubem Sabino. Ao explicar que se tratam de dois homens “negros retintos”, Gil faz questão de pontuar que essa é apenas mais uma forma de chamar os “afrodescendentes” no Brasil. Porque Deus, apesar de toda a sua sabedoria, se faz pequeno para falar com os seus. Simples.
Com uma pausa delicada, cantou “Garota de Ipanema” ao lado da Flor do jardim que, de tão bonita em aparência e voz, encantou o público que registou com os seus telemóveis tamanha beleza materializada no momento em que avô e neta interpretam Tom Jobim e Vinicius de Moraes em português e inglês.
Por incrível que pareça, a delicadeza de Flor, conta o avô orgulhoso, nasceu nos EUA. Por isso, as suas primeiras palavras em comunidade foram em inglês.
Antes mesmo de recuperarmos o fôlego, Bento entrou no cenário com o seu violão e o “Tempo Rei” parou. Neto e avô, numa conversa só deles, permitiram que cantássemos juntos e baixinho, como se também fôssemos parte da família.
Quando todos regressaram ao palco, os acordes de “Não Chore Mais” chegaram como uma força capaz de ressuscitar-nos da morte, porque “Everything 's Gonna Be Alright”. Eu acredito, senhor Gil e família.
Veja as fotos do concerto:
Entre ritmos de guitarras e tambores, Gil parou tudo para lembrar que pulou uma música. Fez então uma autocrítica, falando sobre a “pressa que já não temos mais.” Em seguida, homenageou a sua amiga e conterrânea Gal Costa ao cantar “Esotérico”, partilhando connosco a informação de que ela também dividiu a canção com Maria Bethânia. O público emocionou-se e cantou em uníssono, como se Gal estivesse presente. Não duvido. Tudo foi milagre!
A partir dali, perguntei-me como é que Deus não fala francês, indagação que persistiu enquanto Gil contava a história de “Touche Pas a Mon Pote”, música que compôs para um evento em França, organizado pelo SOS Racismo na década de 80. O brasileiro foi convidado a participar e confidenciou que achou justíssimo fazer alguma coisa entre o povo francês e os provenientes das suas ex-colónias.
Repentinamente, luzes cor de cobre invadiram o palco para falar da força de “Andar com Fé”, porque “a fé não costuma falhar”. Quase que em sincronia, todos se levantaram cantando a fé ensinada por Gilberto Gil e sua família, pois mesmo quando achamos que a perdemos, são momentos assim que nos ajudam a resgatá-la.
E assim se encerrou a celebração do quão divinal é viver no mesmo tempo de Gilberto Gil, que se multiplicou em talento nas suas gerações seguintes.
Aplausos, sorrisos, alegria e emoção tomaram conta dos semelhantes iluminados, que voltaram ao palco, pois não bastava tudo de sagrado que tinha acontecido ali. E no momento do encore, lembrei-me que “O Rio de Janeiro continua lindo” e que “Toda Menina Baiana tem um jeito que Deus dá”, pois a existência de Gil parece milagre suficiente.
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