Em 2004,
Blake Edwards conquistou um Óscar honorário pela sua carreira no cinema e criou um momento verdadeiramente memorável ao parodiar o estado envelhecido de muitos dos recipientes desse galardão: quando
Jim Carrey anunciou a entrada do cineasta para receber a estatueta, Edwards surgiu em cadeira de rodas e com o pé engessado, só que, para espanto generalizado do público, a cadeira disparou desvairada pelo estrado fora, e foi esbater na parede do outro lado do palco, com o realizador a retirar o troféu das mãos do humorista no percurso. Segundos depois, Edwards surgiu de pé e em plena saúde a agradecer o prémio, com um discurso pungente, em que não deixou de agradecer à esposa dos últimos 40 anos,
Julie Andrews.
Mesmo aos 82 anos, o realizador provou que nem por sombras lhe faltava a frescura de espírito que lhe permitiu fazer algumas das mais gloriosas comédias dos anos 60 a 80, como
«A Festa»,
«Victor Victoria» ou
«A Pantera Cor de Rosa», ao mesmo tempo que mantinha a capacidade dramática de que tão bem dera provas em fitas como
«Escravos do Vício» ou
«A Vida é Assim».
Blake Edwards nasceu em Oklahoma em 1922. Filho de um encenador de teatro, começou carreira como actor e argumentista, escrevendo uma sem número de argumentos para a rádio e para a televisão, onde também foi um realizador de mérito: por exemplo, foi ele que criou, escreveu e realizou a célebre série de acção Peter Gunn» em 1959.
Estreou-se na realização para cinema em 1955 com «Bring Your Smile Along», um veículo musical para o célebre cantor Frankie Laine, em que já estava bem presente o género que o tornaria mais conhecido: a comédia. Seguiram-se algumas comédias musicais e um experiência invulgar, «Mister Cory», com
Tony Curtis, muito elogiada por alguns críticos europeus, até que em 1959, Edwards assinou o seu primeiro grande êxito,
«Manobra de Saias», uma comédia com
Cary Grant e
Tony Curtis, com o primeiro como comandante de um submarino decrépito e cor de rosa.
Em 1961, realizou uma das suas obras mais memoráveis,
«Boneca de Luxo», adaptação romântica do ácido livro de
Truman Capote «Breakfast at Tiffany's», que valeu a
Audrey Hepburn um dos papéis mais míticos da sua carreira. O compositor
Henri Mancini, que trabalhou de forma recorrente com Edwards, ganhou o primeiro Óscar da sua carreira com a imortal canção
«Moon River».
Se
«Boneca de Luxo» já indiciava que o cineasta tinha capacidade para encenar dramas,
«Escravos do Vício» (título português de «Days of Wine and Roses»), retirou quaisquer dúvidas que pudessem haver a esse respeito. O filme é um retrato muito impressionante da descida de um casal, interpretado por
Jack Lemmon e
Lee Remick, aos abismos do alcoolismo, tornando-se uma das fitas mais célebres sobre o tema. Mancini voltou a ganhar novo Óscar pela canção que dá titulo ao filme.
Os anos seguintes, contudo, seriam dedicados à comédia, arrancando logo com a série que o perseguiria pelo resto da vida:
«A Pantera Cor de Rosa», na qual surge pela primeira vez não só o célebre felino no genérico animado inicial como principalmente o ultra-desastrado inspector Clouseau, encarnado de forma inesquecível por
Peter Sellers.
O sucesso foi tal que Edwards regressaria à personagem nada menos que seis vezes:
«Um Tiro às Escuras» (1964), eventualmente o melhor de todos;
«O Regresso da Pantera Cor de Rosa» (1975);
«A Pantera Cor de Rosa Volta a Atacar» (1976);
«A Vingança da Pantera Cor de Rosa» (1978);
«Na Pista da Pantera Cor de Rosa» (1982), já estreado após a morte de Sellers e com as sequências com o actor integradas como flashbacks na narrativa e retiradas de cenas e outtakes dos filmes anteriores;
«Maldição da Pantera» (1983), com um novo detective em busca do paradeiro de Clouseau, que foi um flop monumental; e
«O Filho da Pantera Cor de Rosa» (1993), o último filme da sua carreira, com
Roberto Benigni no papel principal. Embora a qualidade da série decrescesse a cada filme, Edwards voltava continuamente a ela como forma de ganhar dinheiro fácil para sustentar outras produções de mais difícil financiamento.
Os anos 60 continuaram em glória para Sellers, com comédias tão populares como o polémico
«A Grande Corrida» (1965), tentativa de recriar em grande escala o humor «slapstick» que fizera escola no cinema de outrora, ou
«A Festa» (1968), com Sellers a fazer uma inesquecível variação de
Jacques Tati.
Em 1970, Sellers trabalhou pela primeira vez com aquela que seria a sua esposa até ao final da vida,
Julie Andrews, no musical
«Darling Lili». A experiência foi tão desastrosa, com interferências sucessivas do estúdio e uma estreia quase secreta, que levaram ao «flop» monumental da fita e a Julie Andrews só ter voltado meia dúzia de vezes ao cinema na década e meia seguinte, e sempre dirigida pelo seu marido.
Os problemas com os estúdios prosseguiram com o «western»
«Vagabundos Selvagens» de 1971, com a MGM a cortar 45 minutos à metragem do filme e alterar-lhe o final sem o seu conhecimento. O «flop» de
«A Semente de Tamarindo», em 1974, com Andrews, motivou o regresso do cineasta ao sucesso fácil das aventuras do inspector Clouseau a meados dessa década, logo com três fitas de enfiada.
Com o seu valor entre o público novamente assegurado, Edwards assinou em 1979 uma das suas comédias mais populares:
«10 - Uma Mulher de Sonho», para glória maior da escultural
Bo Derek e do pianista
Dudley Moore.
Em 1981, realizou uma sátira ultra-ácida à meca do cinema com
«Tudo Boa Gente» (cujo título original era o sugestivo «S.O.B.»), que escandalizou muita gente por apresentar Julie Andrews a mostrar os seios de forma desafiadora perante as câmaras. E no ano seguinte, assinou uma das obras mais elogiadas e populares da sua carreira,
«Victor Victoria», com Andrews num dos papéis da sua vida como a mulher que se faz passar por homem que se traveste de mulher. Por esta comédia musical, com um tratamento franco e descomplexado da homossexualidade, Edwards conquistou a única nomeação ao Óscar da sua carreira (por Melhor Argumento Adaptado) e Mancini mais um Óscar, pela Banda Sonora Original.
O realizador prosseguiu carreira com comédias sem grande brilho, regressando em 1986 à ribalta com o muito elogiado drama semi-autobiográfico
«A Vida é Assim», sobre um doloroso fim-de-semana em família, reunida para a celebração do 60º aniversário de um homem, numa brutal crise de meia idade.
Jack Lemmon assume o papel principal e a sua condição de alter ego do cineasta é tão assumida que a sua esposa no filme é interpretada por Julie Andrews, dois dos filhos do casal interpretam os filhos de ambos, e a película foi rodada na própria casa de Edwards em Malibu.
A partir daí, Edwards praticamente não voltou a deixar a comédia (a única excepção foi o nostálgico
«Sunset», de 1988, com
Bruce Willis e
James Garner), com películas como
«O Amor é uma Grande Aventura» (1989), que ficou na memória graças a uma cena de preservativos fluorescentes, e
«Na Pele de Uma Loura» (1991), em que um homem promíscuo (
Perry King) morre e reencarna no corpo de uma loura (
Ellen Barkin).
Edwards despediu-se do cinema em 1993, apropriadamente com um filme da série que mais fama lhe deu. Em
«O Filho da Pantera Cor de Rosa», o realizador deu a
Roberto Benigni o papel de filho ilegítimo de Jacques Clouseau. E embora a fita não tenha tido sucesso, é marcante por marcar a despedida da Sétima Arte de outro gigante que deve à série a sua maior coroa de glória: Henri Mancini assinou aqui a sua última partitura para cinema.
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