Portugal, algures nos anos 1980, mas numa realidade alternativa, de contornos extremos e ditatoriais. É este o cenário de "Pátria", a terceira longa-metragem de Bruno Gascon, realizador de "Carga" (2018) e "Sombra" (2021), títulos que já percorriam territórios do thriller mas sem traços da ficção científica sugerida no filme que chegou esta quinta-feira às salas nacionais.
Protagonizado por Tomás Alves, é a história do processo de revolta de um homem contra um regime opressivo já premiada no Serbest International Film Festival, na Moldávia, que considerou este um retrato "atual, relevante e necessário de visionamento obrigatório".
Com um elenco que inclui também Rafael Morais, Michalina Olszanska, Matamba Joaquim, João Vicente, Iris Cayatte ou Raimundo Cosme, "Pátria" foi rodado em 2021 na região de Barcelos e surge num contexto no qual fazer cinema por cá ainda é "um bocadinho um ato de loucura dos cineastas", apontou Bruno Gascon em entrevista ao SAPO Mag.
SAPO Mag - Quando é começou a pensar nas ideias para este filme e a desenvolvê-las?
Bruno Gascon - Depois do "Sombra" [estreado em 2021]. E normalmente tenho essas ideias através de coisas que leio, de notícias que vou pesquisando. E, sobretudo, achei que era importante falar sobre este tema devido à conjuntura atual. Naquela altura tínhamos o Bolsonaro, o Trump... E achei que era importante criar este alerta, lançar este alerta às pessoas sobre toda a conjuntura atual. Agora temos Israel e a Palestina, por exemplo. Acho que o cinema pode ter a função de, efetivamente, entreter as pessoas através da ficção, mas também pode ter esse lado interventivo e chamar para a sociedade civil e para a praça pública temas que normalmente são sempre um bocadinho varridos para debaixo do tapete. Nos meus filmes, normalmente falo sobre temas estruturantes da sociedade e achei que este era importante.
Como é que chegou a territórios da ficção científica depois de ter explorado mais os do thriller? Embora "Pátria" também tenha uma componente de thriller, mas muito diferente da dos filmes anteriores...
Vou fazer sempre a ressalva de que isto é uma distopia, mas é uma distopia realista. Porque eu não quis tanto entrar nesse lado da ficção científica. Aqui a ficção científica baseia-se só e apenas nessa distopia, ou seja, é uma realidade que não existe, de um universo que não existe, mas acima de tudo eu quis que tivesse um lado realista. Porque todos nós conhecemos a História, todos nós conhecemos regimes ditatoriais que retiraram direitos, assassinaram pessoas... E achei que era importante falar nesse lado, mas de uma forma o mais realista possível. Baseei-me em várias coisas, basei-me, por exemplo, no livro "1984" [de George Orwell], baseei-me em vários regimes sobre os quais fui lendo e fui percebendo como é que funcionavam, como é que um regime evoluía e como é que era a forma de controlo das pessoas.
De que modo é que concretizou essa vertente realista numa distopia?
Acima de tudo, o que eu tentei foi mostrar o que acontece do particular para o geral. Ou seja, há um regime que não sabemos bem como é, do qual, supostamente, e isso foi feito com esse propósito, cada pessoa que vê o filme fica com uma ideia do que é aquele regime. Mas só vemos, lá está, uma cidade fechada, zonas fechadas, que nos permitem ter uma perspetiva mais aberta. E isso foi uma forma de controlar um orçamento que, como todos sabemos, em Portugal é muito baixo.
Como é que foi feita a escolha deste elenco? Já tinha alguns atores em mente quando iniciou o projeto?
Já tinha trabalhado com alguns deles. Já tinha trabalhado com o Tomás [Alves], por exemplo. Já tinha trabalhado com a Michalina Olszanska, no meu primeiro filme. E já tinha pensado neste elenco. Tento sempre ter ótimos atores nos meus projetos, que é o que tenho aqui, mas acima de tudo pessoas com sensibilidade. Sensibilidade porque são normalmente temas pesados e necessitas de pessoas que compreendam e percebam de onde é que aquelas personagens vieram, o que é que nós estamos a tentar retratar e que mensagem estamos a tentar passar. E todos eles, acho eu, fizeram um ótimo trabalho, ou seja, conseguiram perceber em que lado é que estavam naquela realidade distópica, o que é que estamos a tentar retratar.
A propósito da extrema-direita, de que forma procurou retratar essa realidade? Baseou-se em dados factuais ou foi sempre um exercício de ficção?
Sim, tem esse lado de ficção, mas é baseado nesse lado realista e factual. Normalmente, há pontos em comum nesses vários regimes de extrema-direita que nós conhecemos de mundos ditatoriais. O que fiz foi tentar encontrar e passar todos esses pontos comuns que essas realidades têm e tentar passá-los para estas personagens. Nas personagens, tento sempre criar o lado emocional da sua condição humana, através dos traumas que elas têm. E isso, essas experiências, essas evidências que vão tendo ao longo da vida, que nós não vemos no filme, que são coisas que são criadas pelos atores, fazem com que tenham esse lado realista e, neste caso, extremista, para que tenham pontos em comum com todas as coisas que a gente vê no nosso dia a dia.
O que é que foi mais desafiante em criar esta distopia, que não é algo que vejamos muito no cinema português?
Foi tentar passar essa realidade com orçamentos limitados, tentar criar uma realidade que me permitisse passar uma mensagem às pessoas. Isto passa-se num mundo distópico, mas estamos a viver tempos ou estamos a caminhar por esse tipo de tempos. Portanto, o nosso desafio maior foi esse, tentar criar uma distopia.
Já tem outros projetos em curso? Pretende continuar a explorar preocupações sociais?
Agora estou a fazer a pós-produção de uma série para a RTP. Nunca tinha feito séries. Também fala de alguns temas fortes da sociedade. Fala de bullying, fala sobre depressão, fala sobre adoções ilegais ou roubo de crianças ilegalmente. Não é que eu, no futuro, não vá fazer outro tipo de ficção. Não quer dizer que me baseie só neste lado interventivo. Mas lá está, o cinema pode entreter as pessoas e alertar ou deixar a mensagem de que existem este tipos de problemas na sociedade e é importante falar sobre eles.
Recuando alguns anos, como é que começou a interessar-se por cinema, tanto enquanto espectador como, mais tarde, enquanto autor?
Eu acabo por fazer aquilo que gosto de ver também. Desde pequeno, era alguém que via cinco filmes por dia, todos os dias. Peguei numa câmara por ter o gosto por cinema e tornei-me realizador por causa disso. Porque queria perceber e entender como é que as coisas se faziam. E sempre tive curiosidade de tentar contar histórias. Gosto de ver um filme ou uma série que me desafie, que me meta a pensar. Claro que também vejo coisas só para entreter, não digo que não, mas o que me desperta curiosidade, aquilo que me puxa mais, são aqueles filmes que me obrigam a pensar e que me obrigam a refletir sobre aquilo que vi. E acima de tudo, gosto muito de filmes que tenham que ver com a condição humana e com o lado psicológico. Tento sempre pôr nas minhas personagens todo esse lado psicológico e esse lado essencial do ser humano, e das falhas do ser humano, e tentar chegar a essa perfeição e imperfeição das personagens e essas experiências que vão tendo.
Depois de já ter realizado três longas-metragens, sente que tem menos dificuldades em conseguir fazer cinema em Portugal do que quando começou?
Tudo continua com os mesmos problemas. Que lá está, é a falta de orçamento, vários problemas estruturais, da distribuição à promoção e exibição dos filmes. Todos esses problemas são intrínsecos. Fazer filmes em Portugal acaba por ser um bocadinho um ato de loucura dos cineastas, das produtoras, porque tentamos fazer isto por amor, mais do que pelo resto. Só que as barreiras estão lá e são essas barreiras que muitas vezes se tornam complexas. Termos muito pouco dinheiro para fazer filmes.
TRAILER DE "PÁTRIA":
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