A realizadora Margarida Cardoso concorda com a ideia de uma reparação simbólica de Portugal em relação às ex-colónias, mas o processo será difícil e demorado, porque toca na própria identidade do país.

Em entrevista à agência Lusa, a propósito do filme “Banzo”, que se estreia hoje no festival IndieLisboa, Margarida Cardoso considerou que a questão da “reparação histórica” do país durante o colonialismo pode ser feita em pequenos gestos e de forma simbólica.

“Há pequenas coisas que nós poderíamos começar por fazer. Não tem só a ver com a devolução e restituição das coisas. Tem a ver com um processo interior da nossa própria identidade. […] É uma forma simbólica de dizer ‘mea culpa’. A forma que tem esse simbolismo é que é tudo muito confuso, porque ninguém está a perceber que é sempre uma coisa simbólica. Não se vai devolver tudo o que se roubou. Roubou-se tanta coisa, o que é que se vai devolver?”, perguntou.

Margarida Cardoso dá como exemplo desse simbolismo uma hipótese de intervenção no Padrão dos Descobrimentos e na Praça do Império, em Lisboa.

“Sempre achei incrível que houvesse uma Praça do Império, com símbolos terríveis do Império. Podíamos começar por pequenos gestos, de chamar à praça Amílcar Cabral, qualquer coisa… para começar a desconstruir o que são estes artefactos. […] Essas coisas não deviam ser destruídas. O Padrão dos Descobrimentos podia ser intervencionado. Acho no mínimo escandaloso que os turistas o visitem sem nenhuma consciência” do que representa, opinou a realizadora.

A relação de Portugal com as ex-colónias, em particular com África, tem estado quase sempre presente no cinema de Margarida Cardoso, até por questões pessoais, porque viveu parte da infância em Moçambique.

“Kuxa Kanema - O Nascimento do Cinema” (2003), sobre a produção de cinema em Moçambique, “A Costa dos Murmúrios” (2004), a partir do romance de Lídia Jorge que aborda a guerra colonial, e “Sita – A vida e o tempo de Sita Valles” (2022), sobre a médica e antifascista angolana, são alguns dos filmes de Margarida Cardoso.

A estes junta-se agora “Banzo”, uma ficção de época, passada em 1907 algures numa ilha tropical africana, que retrata a relação violenta entre colonos portugueses e negros em trabalho escravo.

No filme, Carloto Cotta interpreta um médico da metrópole, enviado para a ilha, para curar um grupo de escravos negros, embarcados à força para plantações e que estão a morrer por causa de uma profunda tristeza.

"Banzo"

A palavra “banzo” significa a “nostalgia dos escravizados”, dos que foram forçados a sair de África para trabalhar em plantações no Brasil e se sentiam deslocados e com saudades de casa. No fundo, uma nostalgia que era uma depressão, explicou Margarida Cardoso.

“O que eu tento fazer no filme é um pouco relembrar que a violência está em todo o lado: A forma como as pessoas comunicam, as ligações de poder, não só entre negros e brancos, mas também entre os portugueses pobres e os que têm poder. É uma coisa muito feudal. E eu acho que interessa falar sempre disso para não desvalorizarmos o que foi”, defendeu Margarida Cardoso.

Para a realizadora, “é importante relembrar essa violência” na relação com os povos africanos colonizados, que ainda hoje é desvalorizada.

“Um dos traços que nos é muito específico é a forma como desvalorizamos, na linha da não-inscrição, tudo é fofinho, porque não conseguimos inscrever-nos, ler-nos ou projetar-nos na violência, porque não é uma violência física evidente. […] Não conseguimos ler-nos como pessoas violentas”, disse.

Margarida Cardoso, de 60 anos, diz que todos os seus filmes resultam de uma necessidade, de um impulso em responder a determinadas questões, que têm desaguado quase sempre em África.

A realizadora tem dois projetos em mãos, não sabendo ainda nem como nem quando serão concretizados.

Um deles é uma adaptação, em longa-metragem de animação, do livro biográfico “Caderno de memórias coloniais”, de Isabela Figueiredo, autora sua contemporânea e que também viveu a infância em Moçambique até 1975.

“O lado rude e despido de politicamente correto com que ela [Isabela Figueiredo] fala, é exatamente aquilo que nós não queremos ouvir”, disse Margarida Cardoso.

Outro projeto intitula-se “Devolução”, que está ainda numa fase embrionária e não se relacionada exatamente sobre a discussão em curso sobre as ex-colónias.

“É uma metáfora entre a história pessoal de uma pessoa que tem a minha idade e que encontra algumas coisas incómodas do passado. E essa pessoa está em processo de verificação de objetos e artefactos e sobre a forma como foram obtidos. É uma grande metáfora para uma história geracional”, descreveu.

“Banzo” tem estreia mundial hoje na competição oficial do festival IndieLisboa e repete sessão na quinta-feira.

O filme está também na competição oficial do festival de cinema de Karlovy Vary, que começa a 28 de junho naquela cidade, na República Checa.