(Notícia atualizada às 16h05 com informação sobre projeto por concluir)

Era um gigante, literal e figurativamente: o realizador português António-Pedro Vasconcelos, autor de filmes como “O Lugar do Morto” e “Os Imortais”, morreu em Lisboa, os 84 anos, revelou a família em comunicado.

“A família de António-Pedro Vasconcelos informa que o nosso A-PV partiu esta noite, a poucos dias de completar 85 anos de uma vida maravilhosa”, pode ler-se no comunicado divulgado hoje.

Natural de Leiria, o realizador faleceu na noite de terça-feira no Hospital da Luz, em Lisboa, de uma pneumonia. Iria festejar o aniversário a 10 de março, no próximo domingo.

"Cada ano, cada mês, cada dia, dessa vida extraordinária que passou ao nosso lado fez de nós as pessoas mais felizes do mundo. E, certamente, também a muitos outros, graças ao seu trabalho, ao seu talento, às suas inúmeras lutas e incontáveis paixões", destaca a sua família em comunicado.

"Hoje, mais do que nunca, temos a certeza de que o nosso A-PV, que tanto lutou para que todos fôssemos mais justos, mais corretos, mais conscientes, sempre tão sérios e dignos como ele, será sempre um Imortal. Sabemos bem a sorte que tivemos. Viveremos sempre cheios de orgulho", acrescenta a nota.

António-Pedro Vasconcelos na rodagem de "Os Gatos não têm Vertigens" com Maria do Céu Guerra e, em fundo, Nicolau Breyner

Pai de Patrícia Vasconcelos, uma importante diretora de casting, António-Pedro Vasconcelos fundou o impulsionador Centro Português de Cinema, que ajudou a lançar vários cineastas e o renascimento de Manoel de Oliveira com "Francisca" (1981). Marcado pela Nova Vaga francesa, foi um dos nomes incontornáveis do Cinema Novo Português.

Um belo contador de histórias, dentro e fora do ecrã, foi ao longo da sua vida, enquanto realizador, produtor, argumentista, ocasionalmente ator, crítico e professor, um acérrimo defensor de conciliar uma dimensão de autor com a existência de cinema para o grande público, e enquanto tal, esteve na origem de alguns dos filmes de maior sucesso comercial em Portugal.

Crítico da política de apoios em Portugal, desencantado com muito do cinema produzido na Europa e com o afastamento do público, o realizador, produtor, crítico e professor dizia à Lusa, em 2012, aquando de uma homenagem que lhe foi prestada pelo Fantasporto: “Eu não saí do sítio, eu acho que sou um dissidente, sempre defendi a mesma coisa, sempre defendi os mesmos autores, o mesmo tipo de cinema, sempre”.

Bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian em 1961, através da qual estudou na Sorbonne, em Paris, começou por trabalhar em publicidade, a que se seguiram os documentários “Exposição de Tapeçaria” (1968) e “Fernando Lopes-Graça” (1971).

A primeira longa-metragem de ficção foi "Perdido por cem..." (1972), onde teve como assistente Paulo Branco, que foi buscar e Paris e lhe produziu o filme seguinte, "Oxalá" (1981), um primeiro grande sucesso comercial, com 89 mil espectadores.

"Oxalá"

Seguiu-se uma rutura entre os dois de que nunca quis revelar publicamente os detalhes e durou décadas, acabando por ser o próprio a produzir o filme seguinte, que mudou para sempre a sua carreira e o cinema português, tornando-se, durante muitos anos, o maior sucesso de sempre, com mais de 272 mil espectadores: o incontornável "O Lugar do Morto" (1984), um 'thriller' onde apresentava Ana Zanatti como 'femme fatale' a envolver um jornalista numa intriga de sedução e crime (num trunfo de casting, era o papel de Pedro Oliveira, um conhecido jornalista da RTP).

"O Lugar do Morto"

António-Pedro só regressaria com o ambicioso drama histórico "Aqui D'El Rei"! (1992), uma produção luso-espanhola-francesa então descrita como o mais caro filme português de sempre e que, algo invulgar na época, originou uma série de TV, onde dirigiu Ludmila Mikaël, Arnaud Giovaninetti, Jean-Pierre Cassel, Julie Sergeant, José Coronado, Christine Chevreux e Joaquim de Almeida.

Porém, só se reconciliou com o público no trabalho seguinte, o icónico "Jaime (1999), com Saúl Fonseca, Fernanda Serrano e Joaquim Leitão, que chegou aos 221 mil espectadores e foi premiado com a Concha de Prata do Festival Internacional de Cinema de San Sebastian, e os Globos de Ouro portugueses de Melhor Filme e Melhor Realização.

Também foi em "Jaime" que coincidiu com Nicolau Breyner (1940-2016), que se tornou uma presença incontornável no seu cinema, em títulos mediáticos, populares ou polémicos, como "Os Imortais" (2003), "Call Girl" (2007), com mais de 232 mil espectadores, "A Bela e o Paparazzo" (2010), com 99 mil, e "Os Gatos Não Têm Vertigens" (2014), com quase 95 mil, valendo-lhe os Prémios Sophia de Melhor Filme e Melhor Realização da Academia Portuguesa de Cinema.

Nicolau Breyner em 'Os Imortais'

Outra célebre ligação artística foi com Soraia Chaves, formada por "Call Girl", "A Bela e o Paparazzo", com 99 mil, e "Amor Impossível" (2015), com o terceiro a render-lhe novo Prémio Sophia de Melhor Filme.

"A Bela e o Paparazzo"

Com "Parque Mayer" (2018), prémio Sophia de Melhor Realização, deu o primeiro grande papel a Daniela Melchior, que se lançou numa relevante carreira internacional.

O último filme foi "Km 224", um fracasso de bilheteira protagonizado por Ana Varela e José Fidalgo, lançado em abril de 2022, produzido por Paulo Branco, retomando a colaboração interrompida há mais de 30 anos, por causa de uma separação "um bocado traumática", como recordou ao SAPO Mag na altura.

"Km 224" (2022)

Enquanto produtor, participou na criação da VO Filmes com Paulo Branco, da Opus Filmes e do Centro Português de Cinema, que produziu a maior parte dos filmes do Cinema Novo.

Entre chefia e direção, esteve ligado com os realizadores João César Monteiro e Fernando Lopes à revista "Cinéfilo", que durou pouco mas refletiu o dinamismo cultural de 1973-74.

Foi crítico de literatura e cinema, cronista e comentador televisivo como conhecido adepto do Benfica, e “com forte intervenção cívica”, como escreveu José Jorge Letria no livro de entrevista com o realizador, “Um cineasta condenado a ser livre” (2016).

Foi também uma presença ativa na cidadania em várias causas, incluindo recentemente através da Associação Peço a Palavra, batendo-se contra a privatização da TAP.

Um defensor de um cinema popular que quis filmar até ao fim

Antestreia de "Parque Mayer" a 28 de novembro de 2018

Crítico da política de apoios em Portugal, desencantado com muito do cinema produzido na Europa e com o afastamento do público, António-Pedro disse à Lusa, em 2012, aquando de uma homenagem que lhe foi prestada pelo Fantasporto: “Eu não saí do sítio, eu acho que sou um dissidente, sempre defendi a mesma coisa, sempre defendi os mesmos autores, o mesmo tipo de cinema, sempre”.

“Aquilo que me fez apaixonar pelo cinema na minha adolescência e depois na minha juventude, aquilo que permaneceu, que depois se chamou cinefilia, foi precisamente a minha paixão por esses grandes autores que faziam filmes comoventes e que despertavam toda a espécie de emoções e sentimentos nas pessoas, desde o Chaplin a Hitchcock, passando por Capra, Fellini, Truffaut e até Scorsese”, contou à Lusa.

“Eu mantive-me fiel àquilo que foi a minha paixão de juventude, que foi o cinema que me comove, que me transforma, que é a experiência única de me sentar numa sala de cinema e ser tocado por um filme”, afirmou, em 2012, altura em que nomeou João César Monteiro (1939-2003) como o cineasta mais interessante da sua geração.

António-Pedro Vasconcelos a dar instruções na rodagem de "Amor Impossível"

Nessa entrevista, António-Pedro Vasconcelos repetiu algo que já vinha a dizer há anos em relação ao cinema nacional: “Afunilou-se num determinado tipo de gosto”, numa herança que já vem do Estado Novo de determinação do “bom gosto” através da atribuição de financiamento.

“É sempre bom que os filmes portugueses tenham prémios lá fora. Percebo que os realizadores premiados estejam felizes com isso, mas nós temos de começar por ter um cinema em que os portugueses se revejam”, disse.

O cineasta estava a desenvolver com Paulo Branco um projeto de adaptação de "Lavagante", uma obra inacabada do escritor José Cardoso Pires, editada a título póstumo em 2008, cuja rodagem estava prevista arrancar este Verão.

A produtora anunciou que, em sua homenagem, o projeto será concluído e anunciará em breve quem irá realizá-lo.

"Eu gosto de fazer filmes para as salas, tenho a noção de que a prazo não direi que está condenado, mas é uma coisa que vai representar muito pouco na economia do cinema. Enquanto eu puder fazer filmes, e enquanto houver salas, vou fazendo, mas deixou de ser a minha prioridade. A coisa que eu mais gosto na vida é filmar com atores, mas se não filmar, farei outra coisa. Gosto muito de escrever e tenho projetos de livros para escrever", dizia à Lusa, em 2022.

A homenagem da Academia Portuguesa de Cinema

António-Pedro Vasconcelos com José Mata na rodagem de "Amor Impossível"

"É com profunda tristeza que a Academia Portuguesa de Cinema partilha a notícia do falecimento do produtor, crítico, professor e realizador António Pedro Vasconcelos.

Membro Honorário da Academia e vencedor do Prémio Sophia de Carreira em 2020, APV frequentou os cursos de Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, e Filmografia na Universidade de Sorbonne.

Responsável por alguns dos maiores sucessos comerciais nas salas portuguesas, é um dos nomes incontornáveis no Cinema Português.

Os seus primeiros filmes, “Perdido por Cem”(1973) (produzido pelo Centro Português de Cinema) e “Oxalá”(1980), foram fortemente influenciados pela Nouvelle Vague. Os seguintes, “O Lugar do Morto”(1984) e “Jaime” (1999), foram um grande êxito junto do público.

Realizou séries documentais e de ficção para a televisão, como foi o caso da co-produção luso-francesa “Aqui d’El Rei”(1992) e “Mílu, a Menina da Rádio” (2007) e, mais recentemente, “A Voz e os Ouvidos do MFA” (2017).

Realizou “Os Imortais” (2003), “Call Girl" (2007) e A Bela e o Paparazzo (2010) e em 2015, foi vencedor dos Prémios Sophia para Melhor Filme e Melhor Realizador com “Os Gatos Não Têm Vertigens”, realizado em 2014. Mais recentemente realizou “Amor Impossível” (2015) que lhe valeu o Sophia de Melhor Filme e “Parque Mayer” (2017), tendo-lhe sido atribuído o Sophia de Melhor Realizador. Em 2022 realizou "KM 224", que em 2023 deu origem a uma mini-série televisiva com o mesmo nome.

A par da realização foi produtor de cinema, tendo sido um dos fundadores da V.O. Filmes, Opus Filmes e da cooperativa Centro Português de Cinema, que produziu a maior parte dos filmes do Cinema Novo Português. Foi apresentador do programa Cineclube, na RTP2; fez crítica literária e cinematográfica, tendo chefiado a redação de O Cinéfilo (suplemento de cinema d´O Século) com João César Monteiro, foi colunista da Visão e diretor de A Semana, suplemento do Independente.

Um lutador de causas cívicas, foi ainda professor na Escola de Cinema do Conservatório Nacional e coordenador da licenciatura em Cinema, Televisão e Cinema Publicitário da Universidade Moderna de Lisboa.

A toda a sua família, colegas e amigos os nossos mais sinceros sentimentos".