Patricia Russell tinha apenas seis anos quando se despediu do seu pai, Eric Liddell, mas guarda boas recordações do atleta imortalizado no filme vencedor dos Óscares "Momentos de Glória" pelo ator Ian Charleson.
Russell, uma ex-enfermeira espirituosa e calorosa de 88 anos, nasceu muito depois do seu pai missionário escocês ter alcançado o ouro nos 400 metros, há um século, nas Olimpíadas de Paris de 1924, tendo notoriamente recusado a correr os seus favoritos 100 metros porque as eliminatórias eram no domingo.
Como mostra o filme de 1981, o companheiro de equipa britânico Harold Abrahams (Ben Cross no filme) conquistou o ouro dos 100m na ausência de Liddell.
Os chefes de equipa tentaram em vão convencê-lo a mudar de ideias, mas Russell diz que, embora o seu pai "não fosse um fanático das Bíblias" na Escócia, naquela altura o domingo era efetivamente o dia de descanso.
“Ele era realmente um cristão bastante liberal”, diz a filha à France-Presse numa entrevista por telefone da sua casa perto de Toronto, no Canadá.
“Ele certamente não abriu mão dos seus princípios por uma medalha de ouro. Acho que se o tivessem persuadido a concorrer, ele não teria vencido. Teria sido um choque pois teria corrido a pensar que vendera a sua alma", reforçou.
Em 1991, em nome da família, Russell entregou as medalhas de Liddell - o ouro nos 400m e o bronze nos 200m nos Jogos - ao Príncipe Filipe, então chanceler da Universidade de Edimburgo, que as mantém.
A mãe de três filhos - ela ri enquanto descreve as idades de 63, 65 e 67 anos - lembra-se de outra corrida na China, onde a família morava quando Liddell era missionário.
“Era uma corrida para crianças e pais e deveria ter sido fácil pois eu também era bastante rápida”, disse Russell.
“Tinha que lhe entregar um lenço e ele terminaria a corrida. Fui a correr pela pista, mas tinha um lenço lindo e queria ficar com ele, portanto não lho dei", recorda.
“Não recebi um sermão dele, mas disse-me que o lenço podia ser giro, mas que a corrida era uma questão de trabalho em equipa. Às vezes, estas coisas ficam", conta.
Apanhar a cauda de um coelho
Embora o seu trabalho na China o tenha afastado de casa por longos períodos, houve o que acabou por serem as últimas férias idílicas de verão em família em Carcant, Escócia, em 1940.
Foi ainda mais especial porque a mãe canadiana Florence, nove anos mais nova que Liddell, Patricia e a sua irmã Heather tiveram que correr o risco de uma travessia do Atlântico em tempo de guerra.
“Lembro-me que Carcant foi invadida por coelhos”, diz.
Enquanto passeava com as filhas, Liddell apanhou um.
“Ele apertou-o e disse 'Empada de coelho para o jantar!'”, lembra Russell.
“Heather era um pouco mais sensível e começou a chorar, portanto ele disse à mãe: ‘Não voltarei a fazer isto’. Mas imagine-se a velocidade que ele tinha para apanhar um coelho!", destaca.
“Ele lançou-nos um desafio e disse 'Vou dar-vos um saleiro e ver se conseguem colocar sal na cauda de um coelho. Estávamos a perseguir coelhos o dia todo, sem sorte”, diz.
A primeira etapa da viagem de volta à China num comboio de 50 navios trouxe uma forte constatação da fragilidade da vida quando os submarinos atacavam os navios.
“Vi cinco navios afundados”, diz Russell.
“Disse ao pai ‘Deveríamos ir ajudar quem está na água’, mas ele disse ‘Não, é demasiado arriscado’ e alguém apontou para um periscópio.
"Enquanto crianças, não percebemos a gravidade da situação, mas os nossos pais eram muito bons. Disseram-nos 'Façam exatamente o que vos dizem e não sejam patetas'", conta.
Em choque
Com Florence grávida da sua terceira filha, Maureen, e o Japão cada vez mais beligerante, Liddell decidiu que era melhor para ela e os filhos regressarem ao Canadá em 1941.
Russell lembra-se do pai colocá-la ao colo e dizer: "Seja uma boa menina. Você é a mais velha, cuide da sua mãe, da sua irmã e do bebé até voltar a ver-me'".
Mal sabia ela que aquelas seriam as últimas palavras que lhe diria.
Liddell acabou num campo de internamento após o Japão entrar na Segunda Guerra Mundial e as cartas dele - restritas a 25 palavras - eram esporádicas. Numa delas, cada palavra tinha sido cortada pela censura japonesa.
Russell, porém, sempre pensou que “o seu pai divertido e vibrante” regressaria, até 1 de maio de 1945.
“Cheguei a casa, morávamos com a minha avó em Toronto e estava tudo terrivelmente quieto. Perguntei-lhe onde estava a minha mãe e subi aos quartos", conta.
“A mãe estava lá sentada, com a Maureen e a Heather, e disse 'O pai morreu' [de um tumor cerebral]. Eu disse 'Não, não, não, acho que cometeram um erro'", relembra.
“Era 1 de maio, pouco antes do Dia da Vitória. Portanto, o mundo estava a comemorar e ela em estado de choque, uma viúva com três filhas pequenas”, nota.
Russell diz que a sua dor pela morte do pai foi amenizada ao encontrar-se com antigos internados.
“Muitos anos depois, conheci crianças que estavam naquele campo e contaram-me como a presença dele alterou a suas vidas. É algum consolo saber que ele era muito querido lá, mas que desperdício", conclui.
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