Radu Jude não é um nome praticamente desconhecido para os espectadores portugueses. Os seus filmes têm presença habitual em festivais (conquistou o Grande Prémio no Indielisboa com “Aferim!”), mas finalmente chega ao circuito comercial esta semana com uma provocadora sátira que “abocanhou” o Urso de Ouro no Festival de Berlim.
"Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental” é uma obra que nos fala com uma linguagem corrente e contemporânea, não apenas pelo cenário pandémico, mas também pelo retrato da sociedade decadente impulsionada por esta crescente falta de empatia. Tudo por causa de um vídeo pornográfico com uma professora que fica fora de controlo na internet e um iminente julgamento em praça pública, intercalado com um guia de perversões que a Roménia esconde na sua natureza.
Através de um dos grandes filmes de 2021, Radu Jude falou com o SAPO Mag durante a exibição da sua obra na mais recente edição de um festival que lhe é tão querido e que terminou esta segunda-feira, precisamente o Indielisboa.
Gostaria de começar por lhe perguntar donde surgiu a ideia para este filme e ao mesmo tempo questionar se a pandemia teve um papel fundamental na inspiração do projeto?
Na verdade, a ideia veio antes da pandemia, só que a vinda dela me obrigou a adaptar a tal cenário.
Sendo assim, que desafios trouxe a pandemia ao filme?
Influenciou de duas maneiras. A primeira foi a adaptação da história ao contexto pandémico e tivemos de alterar alguns pormenores ali e acolá. A outra, talvez a mais importante, esteve relacionada com a segurança e proteção da equipa e do elenco. Quando estávamos a rodar, no final do Verão do ano passado, os casos de COVID estavam a subir e todos nós estávamos preocupados. Tínhamos alguns atores vulneráveis e que solicitavam mais proteção, por isso tive que mudar. Como se pode ver, no último ato de “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, a ação era para decorrer numa sala de aula, mas talvez por razões dramáticas, visto que durante a pandemia tais reuniões em sítios fechados não eram recomendados, alteramos a sequência para o ar livre, com distância social e máscaras. E é isso também, o uso das máscaras, não só entre a equipa, mas no filme. Queria captar aquele momento em que vivíamos, a cidade “vestida” nesse medo pandémico. Como tal, as máscaras não só funcionaram como um método de segurança na rodagem, mas também como um marco temporal para o filme.
Teve que lidar com algum caso de anti-máscara na equipa?
Sim, mas... no caso dos anti-máscaras ou anti-vacinas... compreendo que, para se ser rebelde, tem que se quebrar regras, ser contra as autoridades. Apoio totalmente isso... só que, nestes casos, julgo que vão numa direção oposta. Porque ser contra as máscaras é ser contra o outro, a saúde do próximo. Não usar máscara não é só um risco para quem não quer utilizar, mas para os outros, é como ir na autoestrada a 200 km/h, torna-se um perigo, quer para si como para os outros. Nisso não vejo rebelião alguma, mas sim narcisismo e egoísmo. Expus isto à minha equipa e apenas alguns é que resistiram. Claro que custa fazer um filme ou atuar com máscara, rodamos com tempo caloroso e durante várias horas. É normal que torne o processo ainda mais fatigante. Mas há uma diferença entre esse cansaço e o sacrifício que todos nós fazemos para levar a cabo o projeto. Ou seja, todos, de alguma maneira, cedem para pertencer a uma equipa.
VEJA O TRAILER.
No terceiro e último ato do seu “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, aquela reunião entre pais e a professora, foi quase como olhar para a atualidade das nossas redes sociais. Ouvimos teorias da conspiração, antissemitismo, racismo, misoginia, homofobia, um conservadorismo prejudicial, entre as outras barbaridades, é como se o Facebook ganhasse um corpo e rosto.
É verdade. Houve um crítico romeno, Andrei Gorzo, que escreveu que se assemelhava a um conflito de Facebook. Penso que têm razão porque baseei-me realmente no tipo de interações e no dito "barulho" de como saltamos de tópico em tópico nas nossas discussões no espaço virtual. É por isso que tento artificializar essa mesma discussão, tratando-a como uma "sitcom" ou uma comédia de arte, afastando do realismo e abraçando a caricatura. É como Picasso disse uma vez sobre as caricaturas, se não são realistas é porque são verdadeiras.
No segundo ato, intitulado “Pequeno Dicionário de Anedotas, Signos e Maravilhas”, quando chegamos à definição da palavra 'Cinema', somos confrontados com a seguinte ideia: “O cinema reflete os horrores do Mundo, os quais estamos demasiados amedrontados para ver na sua realidade”. Isto, entrando numa metáfora alusiva ao mito de Medusa. Gostaria de confrontar esta mesma definição com o seu cinema.
A citação, em si, do contexto da Medusa e do seu olhar para atribuir significado para com a nossa relação com o cinema, foi retirada do livro “Theory of Film”, de Siegfried Kracauer. É uma frase poética, mas que penso não se enquadrar totalmente com a ideia de cinema. No fundo, gosto desse paralelismo com as imagens visualizadas no ecrã para com a mitologia ateniense de Perseus e o seu escudo espelhado, como única forma de olhar para a monstruosa Medusa. Neste caso para os horrores do mundo que os nossos olhos “a nu” são incapazes de lidar. Colocando dessa maneira, são levantadas mais questões do que respostas. Susan Sontag falou disso no seu livro “Regarding the pain of others” [“Diante da Dor dos Outros”], sobre a complexidade e questionabilidade da realidade. A imagem, em si, é questionada consoante a sua natureza. Por isso mesmo, não tenho com isto uma resposta concreta, nem sequer uma solução para permanentes dúvidas sobre a que imagens deveremos assistir, quais as que devemos rejeitar. Se é eticamente correto vermos imagens de horrores ou as devemos desprezar. Julgo que nós, enquanto Humanidade, teremos uma resposta absoluta para isto.
Em muita da sua obra, assim como neste filme, critica a Igreja Ortodoxa ...
Não tanto como queria. [risos] Deixe-me só salientar isto: não tenho problema algum com religião. Claro, desde que não apelem à violência. Nem com os crentes, com a fé em geral. Por mim, as pessoas podem acreditar no que quiserem, até mesmo no horóscopo [risos]. O meu problema com a Igreja, a Ortodoxa neste caso, é ela como instituição, que por diversas vezes se associou a movimentos fascistas. Desde a sua origem turbulenta, que levou à criação daquilo que foi comummente designado como “Ku Klux Klan Ortodoxo”, passando pela ditadura comunista, onde a Igreja fez parte do regime, até posteriormente ligar-se ao poder político e difundir sempre uma mensagem racista, homofóbica e aí fora. É neste sentido que estou contra a Igreja. Quer dizer, se fosse simplesmente para cuidar dos seus fiéis não me oporia, mas pelo facto de se assumir como uma força política com ambição de mudar a sociedade não só para crentes, mas para todos nós... não posso apelar a qualquer simpatia por uma instituição destas.
Tendo em conta o tipo de produção que nos chega, nomeadamente a dita Nova Vaga, na qual o podemos incluir, e até, recentemente, pelo documentário “Colectiv - Um Caso de Corrupção”, ficamos com a sensação de que a Roménia é um país terrível para se viver. [risos].
É uma questão demasiado complexa, e tem, obviamente, uma relação de comparação e perspetiva. Por exemplo, se eu vir os filmes de Pedro Costa, a minha primeira impressão é que Portugal é um país horrível para viver. Mas depois assistimos a um Manoel de Oliveira, ou até mesmo ao “Diamantino”, e já não partilhamos essa ideia. A verdade é que os cenários oferecidos pelo cinema não são 100% coerentes. O que acontece é que nós, romenos, sofremos com a comparação. Comparamo-nos com muitos dos países ocidentais e sentimo-nos mal com essa comparação. Sentimo-nos pobres, incultos ou pequenos. Como referiu, um "terrível país para viver”, com imensos problemas, pobreza e maus políticos. Temos muito para resolver, mas equivalente aos nossos problemas, muita boa gente que forma este país.
Mas nem tudo é mau, e voltando à comparação, se a fizermos com, talvez, uma Albânia ou uma Ucrânia, reparamos que, na Roménia, possuímos algumas liberdades que faltam a esses países. E poderíamos ser grandes com uma boa direção, com os ditos bons políticos. Mas como dizia, são questões complexas e a culpa não é concreta. Pode ser nossa, como pode ser da União Europeia, sei lá, é simplesmente complicado. E nisso, é para mim, um dos grandes problemas com o "Colectiv, porque o filme praticamente nos diz que o problema vem da velha política e sistema, e que isso pode ser resolvido com a entrada de novos políticos. Como Vlad Voiculescu, que se especulava que teria a possibilidade de alterar o cenário se fosse promovido a ministro da Saúde. Como tal, fica “bem” no filme, mas que é bastante ingénuo e simplista. Porque isso aconteceu, esse tipo converteu-se no ministro da Saúde num novo governo no ano passado e o que resultou foi um desastre. Não por ser corrupto, ele não é corrupto, mas por ser um incompetente e narcisista. Obviamente, que a culpa não seja só dele, o sistema é demasiado grande e profundo para ser alterado apenas pela vontade de uma só pessoa. É uma ideia ridícula e ridiculamente inocente. E é esse o meu problema com a “Colectiv”, o de dar a ilusão de que o sistema pode ser combatido por apenas uma pessoa.
Se grande parte do cinema romeno que atravessa as fronteiras é um cinema político e contra as forças políticas em atividade, como é a sua relação com elas? Existem boicotes, “censuras” ou impedimentos para que esta visão seja transmitida para o mundo fora?
Na Roménia, o cinema é tão insignificante que não se torna cúmplice do poder local e gere como cresce de uma forma independente. Apesar de existirem certos aspetos, estamos satisfeitos com essa independência que nos garante uma certa liberdade que, novamente voltando à comparação, alguns países não possuem. Por exemplo, a Hungria. Claro, que temos alguns jornalistas, políticos, conservadores e 'influencers' que se revoltam contra o nosso cinema, mas, na minha perspetiva, acho isso ótimo [risos].
Quanto a novos projetos? É sabido que apresentou recentemente em Locarno uma curta experimental.
Bem, tenho dois projetos. O que foi apresentado em Locarno [“Caricaturana”], o outro que será em Veneza [“Plastic Semiotic”]. E estou a trabalhar em mais duas curtas, sobre a história da Roménia e da Europa. Acabei de receber financiamento para um novo filme, que espero começar a rodar já para o próximo ano. Tenho rescrito o guião, será um filme bastante simples mas que sempre tive vontade de concretizar e espero conseguir fazê-lo. Será sobre relações entre indivíduos e grandes empresas.
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