Um exemplo do que a fama precoce e o excesso de trabalho podem fazer a uma pessoa, mergulhando-a num ciclo de drogas para dormir e para acordar, antidepressivos, álcool em festas e em privado; e uma vida cheia de desilusões e excessos que acabaram primeiro com a carreira de atriz, a seguir com a de cantora e finalmente com a própria vida: Judy Garland, um dos maiores talentos da história do cinema e da Era de Ouro de Hollywood dos filmes musicais, mas também um exemplo trágico de "estrela infantil" com uma vida destruída pelos seus vícios, nasceu há 100 anos.
Com o nome Frances Ethel Gumm, natural de Grand Rapids, Minnesota (10 de junho de 1922), começou a carreira começou muito cedo: a sua família fazia parte do teatro musical e aos quatro anos já participava de um grupo com suas irmãs, "The Gumm Sisters".
A voz cristalina lançou-a aos nove anos como cantora em curtas-metragens ainda com as irmãs e após assinar um contrato aos 13 anos com o estúdio MGM, tornando-se Judy Garland (não há consenso sobre a origem do nome artístico) e prosseguindo uma carreira em musicais que teve os primeiros pontos altos em vários filmes com outra futura grande estrela infantil e juvenil.
Amigos para toda a vida, Judy Garland e Mickey Rooney fizeram dez filmes ao todo, incluindo quatro da popular série "Andy Hardy", com destaque para "Andy Hardy Apaixona-se" (1938), "Prosápias de Andy Hardy" (1940) e "Andy Hardy Começa a Vida" (1941). A química no grande ecrã levou o estúdio ainda a juntá-los pela primeira vez como protagonistas no que viria a ser um clássico: "De Braço Dado" (1939).
Judy Garland começava a ser notada pelo público, mas o sucesso absoluto viria com o incontornável "O Feiticeiro de Oz" (1939). Tinha 16 anos e recebeu um Óscar especial pelo seu trabalho como Dorothy neste clássico de Victor Fleming que tem deslumbrado gerações e continua a ser das propostas mais requisitadas para toda a família na quadra natalícia.
Mas houve o outro lado da fama: a MGM anexou uma cláusula ao seu contrato em como não poderia engordar e tampouco perder a sua voz. Começou a tomar remédios para o peso e mesmo com 20 anos, os executivos do estúdio queriam que ela continuasse a ser a mesma Dorothy, colocando-a em papéis inconsequentes de "girl next door".
Fez uma excelente transição para a idade adulta com "Não há como a Nossa Casa" (1944), que nos deu o "Have Yourself a Merry Little Christmas", conduzida pelo realizador Vincente Minnelli, que seria o segundo marido. Da relação nasceu a atriz Liza Minnelli a 12 de março de 1946.
O realizador dirigiu-a a seguir no papel inesquecível de diva no 'sketch' "The Great Lady Has An Interview" de "As Mil Apoteoses de Ziegfeld" (1945) e no seu primeiro papel dramático em "A Hora da Saudade" (1945), mas aqui o público não a aceitou sem estar acompanhada de canções.
Voltou aos musicais e aos triunfos com "A Batalha do Pó de Arroz" (1946), de George Sidney, antes de outro momento incontornável: "O Pirata dos Meus Sonhos" (1948), um dos mais deslumbrantes musicais de Minnelli, paródia aos populares "filmes de piratas" da década de 1940, com a música de Cole Porter por fundo e formando um par de eleição com Gene Kelly.
À frente do seu tempo, o filme foi um fracasso comercial, mas é uma das melhores interpretações de Judy Garland como atriz. Apesar disso, o casamento estava a desmoronar-se e a rodagem foi atingida em cheio pelos seus crescentes problemas de saúde, provocados por anos de sobrecarga de trabalho, que levaram a uma dependência de barbitúricos de que nunca se livrou, dois abortos antes do 21.º aniversário, depressões e tentativas de suicídio: um colapso nervoso e hospitalização durante várias semanas fez com que falhasse 99 dos 135 dias de ensaios e filmagens. Ainda não tinha feito 25 anos.
A MGM quis repetir logo a seguir a dupla de atores noutro filme, mas Kelly lesionou-se e Fred Astaire foi convencido a abandonar a sua recente reforma artística: realizado por Charles Walters, "Quando Danço Contigo" (1948) foi uma produção tranquila e um sucesso gigantesco de bilheteira que reergueu as carreiras de todos os envolvidos
Naturalmente que o estúdio encontrou logo outro projeto para a nova dupla, "O Bailado do Ciúme" (1949), mas dependência de barbitúricos, anfetaminas (que a faziam ter alucinações e mudanças te terríveis de humor) e a seguir do álcool, combinadas com exaustão, problemas de sono e depressão, levaram-na a ser despedida e substituída por Ginger Rogers. Aconteceu o mesmo em "A Rainha do Circo" (1950), com o papel principal a passar para Betty Hutton.
Com a dependência de remédios, uma tendência para engordar e a injusta fama de difícil trato a crescer por Hollywood, o último filme para a MGM acabou por ser "Festa no Campo" (1950), um reencontro com Charles Walters e Gene Kelly: a ligação de 15 anos chegou ao fim por mútuo acordo (para arrependimento mais tarde do patrão Louis B. Mayer) depois de, exausta, ser forçada a interromper as férias de longa duração que lhe tinham sido prometidas para substituir a grávida June Allyson em "Casamento Real" e começar outra vez a faltar à rodagem alegando doença.
"Acabada" em Hollywood, a carreira de Judy Garland renasceu com concertos de sucesso gigantesco em Londres e Nova Iorque. Divorciada de Minnelli, teve a segunda filha (Lorna Luft, também atriz) do terceiro casamento, com o empresário Sidney Luft em 1952, que conseguiu um acordo com o estúdio Warner Bros. para financiar o filme do regresso, uma nova versão musical do clássico "A Star Is Born", de 1937 ("Nasceu Uma Estrela" em Portugal).
Muito antes da versão de 1976 com Barbra Streisand e Kris Kristofferson, ou a de 2019 com Lady Gaga e Bradley Cooper, a história de uma cantora e atriz em ascensão e de uma estrela alcoolizada em decadência teve prestações inesquecíveis de Judy Garland e James Mason: "Assim Nasce Uma Estrela" (1954) tem porventura os melhores papéis das suas carreiras.
De certa forma um bom paralelo da vida da atriz nas duas personagens, o filme realizado por George Cukor, além de deixar para a posteridade temas como "The Man That Got Away", foi um triunfo e nomeado para seis Óscares, incluindo Melhor Atriz. Na noite da cerimónia e rodeada de favoritismo, as câmaras estavam no hospital onde recuperava após dar à luz o terceiro filho para transmitir o discurso, mas a estatueta foi para Grace Kelly em "Para Sempre", no que se acredita ter sido um "castigo" pelos dramas da sua vida pessoal. A famosa colunista Hedda Hopper contou que a diferença foi de seis votos e ficou famoso o telegrama enviado por Groucho Marx a dizer à atriz que tinha sido "o maior roubo desde o Brink" [um assalto a uma empresa de segurança em 1950, o maior de sempre nos EUA à época].
O filme foi um sucesso junto da crítica e extremamente popular junto do público, mas não conseguiu ser rentável por causa do orçamento excessivo, causado por mudanças de produção e uma Judy Garland que, com o passar do tempo de rodagem, começou a manifestar os mesmos problemas dos tempos de MGM. A segurança financeira que esperava assegurar não se materializou e o contrato para fazer mais dois filmes com a Warner foi cancelado.
Seguiu-se o regresso aos concertos um pouco por todo o mundo e com grande sucesso, vários prémios Grammys, e só sete anos depois o cinema, para interpretar o primeiro papel dramático sem canções desde "A Hora da Saudade" em 1945: o de uma mulher acusada de miscigenação sob a lei nazi em "O Julgamento de Nuremberga" (1961), de Stanley Kramer.
Os relatos indicam que estava feliz e entusiasmada por voltar, ao lado do amigo Spencer Tracy e de Burt Lancaster, Richard Widmark, Marlene Dietrich, Maximilian Schell e Montgomery Clift, que foi pontual e profissional durante toda a rodagem: os 18 minutos com as emoções à flor da pele num filme de três horas valeram-lhe a segunda nomeação para os Óscares, agora como Atriz Secundária, que perdeu para Rita Moreno em "West Side Story".
Com a sua estrela a subir na televisão, só regressaria para mais dois filmes, um deles "Uma Criança à Espera" (1963), noutra notável interpretação dramática cheia de emoção e em choque com Lancaster, às ordens de John Cassavetes.
Após o cancelamento da sua série "The Judy Garland Show" em março de 1964, os problemas pessoais e de saúde foram-se agravando. Uma digressão na Austrália algumas semanas depois foi desastrosa, mas na Inglaterra reencontrou um público bem cativo e generoso num espetáculo com a filha Liza Minnelli.
O divórcio de Sidney Luft chegou em 1965 e ainda se casou mais duas vezes antes de morrer, cheia de dívidas, em junho de 1969, aos 47 anos e com um rosto marcado pelos excessos, de uma overdose acidental de barbitúricos.
Esta fase final, entregue a uma depressão e à dependência do álcool e medicamentos até aceitar fazer uma digressão em Inglaterra, foi retratado no filme "Judy", de 2019, numa interpretação amplamente elogiada (e premiada com o Óscar de Melhor Atriz) de Renée Zellweger, o elemento mais consensual do 'biopic' do britânico Rupert Goold que adaptava o musical estreado em 2005 de Peter Quilter apropriadamente intitulado "End of the Rainbow"...
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