O cinema de nicho mais 'arthouse' da Índia teve o seu momento ao sol com vários filmes na 77.ª edição do Festival de Cannes, incluindo o primeiro em 30 anos na corrida à competição principal, mostrando que há muito mais na sua indústria do que Bollywood.
A indústria cinematográfica indiana, que registou receitas de quase 1,5 mil milhões de dólares no ano passado, segundo a consultora Ormax Media, raramente sente necessidade de satisfazer o público ocidental.
Mas também não faz muito para apoiar filmes independentes de pequena escala que ganham vagas em festivais artísticos como Cannes, que não vê um indiano competir pelo seu prémio principal, a Palma de Ouro, desde 1994.
Isso mudou na quinta-feira, com "All We Imagine as Light", estreando na competição principal, um retrato poético de duas mulheres que migraram para a cidade de Bombaim para trabalhar como enfermeiras.
Mas mesmo isto precisou o apoio da França e de outros investidores internacionais para conseguir ser feito.
“A indústria indiana é bastante autossuficiente, por isso muitos cineastas nem sequer sentem a necessidade de enviar os seus trabalhos para festivais”, disse em Cannes à France-Presse (AFP) a realizadora Payal Kapadia, de 38 anos.
“Mas se se quiser fazer um filme mais pequeno que não seja tão focado na narrativa, ou que não funcione com a configuração da indústria, é difícil encontrar financiamento, portanto o sistema francês realmente ajudou-me muito”, acrescentou.
Muito bem recebido pelos críticos, "All We Imagine as Light" está bem cotado nas apostas para o palmarés do júri presidido por atriz e realizadora Greta Gerwig ("Barbie") , que será anunciado no sábado ao fim da tarde.
Os filmes indianos já foram uma atração regular em Cannes: o cineasta Chetan Anand foi co-vencedor do primeiro festival em 1946 com "Neecha Nagar", e houve várias inscrições nos anos seguintes, principalmente do venerado Satyajit Ray.
Mas depois os filmes secaram, com “Swaham”, de Shaji N. Karun, em 1994, a ser o último a conseguir uma vaga na competição principal.
'Aula magistral'
O filme de Kapadia não é o único a colocar a Índia em destaque em Cannes este ano.
"Sister Midnight", na secção da Quinzena dos Realizadores, segue uma mulher inadaptada de uma pequena cidade num casamento arranjado, enquanto "The Shameless", na secção Un Certain Regard, segue uma trabalhadora do sexo que foge de um bordel de Deli após esfaquear um polícia.
Algumas das críticas mais fortes foram para "Santosh", também em Un Certain Regard.
A história de uma polícia que enfrenta misoginia, corrupção e brutalidade numa pequena cidade da Índia foi elogiada como um "emocionante e poderoso policial feminista" (Time Out) e "uma aula magistral em subtileza" (IndieWire).
A realizadora Sandhya Suri disse à AFP que pode ser uma história “difícil e complexa”, mas a sua primeira preocupação foi com “os polícias que conheço – como eles vão assistir a isto”.
“Até ao limite das minhas possibilidades, este é um filme que deve parecer real para o público indiano, e não apenas um filme voltado para o Ocidente”, disse.
As estrelas de "Santosh", Shahana Goswami e Sunita Rajwar, cujo relacionamento complexo impulsiona o filme, disseram que a Índia tem muitos grandes cineastas, mas frequentemente era difícil para eles encontrar um canal.
“Na Índia, o cinema é visto em grande parte como entretenimento, por isso é impulsionado pela economia. Filmes independentes são muito difíceis de fazer, apesar de serem baratos”, disse Goswami.
A atriz acrescentou que o seu sonho era reunir todas as empresas independentes de uma forma mais organizada, enquanto Kapadia espera que possam seguir o exemplo francês e canalizar os lucros dos sucessos de bilheteira para produtos mais artísticos.
“Se uma pequena percentagem fosse colocada num fundo destinado a filmes independentes, ajudaria muito as pessoas”, indicou.
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