“Hip to da Hop” propõe um mergulho no mundo da cultura muito urbana do hip hop, estilo musical adaptado em Portugal a partir da sua origem do Bronx, bairro nova-iorquino. Surge acompanhado de outras manifestações culturais: o “rap”, o DJ, o “breakdance”, o “grafitti”.
O filme tem sessões no âmbito do IndieLisboa nos dias 28, no cinema São Jorge, e 30, na Culturgest, e os cineastas explicaram ao SAPO Mag o que os entusiasmou registar após uma viagem de Norte a Sul do país…
SAPO Mag - O subtítulo do vosso filme, "Viagem a Portugal em 4 Vertentes", pressupõe a ideia de deslocação espacial generalizada no país do universo do hip hop e as suas várias manifestações culturais. É um fenómeno curioso quando conectado com as suas raízes, que eram dos bairros negros de grandes cidades norte-americanas...
O subtítulo do “Hip to da Hop” é uma pista acerca do tema do filme, que é de facto uma viagem que ambos também fizemos para poder compreender melhor esta cultura. E a melhor parte dela foi termos sido guiados pelas pessoas que entrevistamos - falávamos com alguém que nos levava a outro artista e que, por sua vez, nos indicava um terceiro. Na construção do argumento quisemos provar uma sensação semelhante à que nós vivenciamos, por isso colocamos apenas a voz de quem participa e as imagens e os sítios onde estivemos. Assim deixamos que um “writer” de Lisboa partilhe a sua visão e nos leve até um “B-boy” do Porto e por aí afora.
É de facto interessante perceber como é que uma cultura dos Estados Unidos, que nasceu para travar as lutas entre gangues, é importada para Portugal. Ela chega até nós quase vinte anos depois de ter nascido, já sedimentada e cristalizada através dos “medias” e das cassetes. Houve no início um processo natural de imitação em todas as artes, um processo de aculturação. Quando começámos a fundir a cultura portuguesa com a do hip hop o jogo começou a mudar. De certa forma, sentimos que ainda estamos nesse processo e que somos bastante exigentes connosco nesse sentido, há uma demanda profunda no hip hop naquilo que é único e genuíno, na criação de arte que represente o criador e o local em que vive. Essa apropriação, evolução e as transformações que a tornaram numa parte integrante da cultura portuguesa, foram de facto alguns dos motes do nosso filme.
Vocês encaram o universo da música hip hop como enquadrada num quadro artístico mais amplo que envolve o "grafitti", o DJ, o rap e o breakdance. Acham que todos esses fenómenos são indissociáveis?
Ao longo dos anos tem havido uma perceção errada do que é a cultura hip hop. Muitos julgam que é apenas música ou uma dança. O que nos parece importante perceber é que não são só os elementos que tornam o hip hop em algo cultural, são também os valores e as regras que fazem parte desta cultura. O ponto de discussão que muitas vezes surge é o afastamento físico dos artistas das várias vertentes. Quando a cultura nasce no Bronx, DJ, “B-boys”, “writers” e “rappers” estavam todos próximos porque era ali o núcleo. Quando surge em Portugal eram poucos e, de uma maneira geral, todos se conheciam. As coisas hoje mudaram: a expansão e as revoluções tecnológicas permitiram uma individualização que ao início não existia. É algo óbvio e talvez uma evolução necessária. O que nos interessou sobretudo compreender foram as consequências que isso trouxe e as opiniões sobre este ponto entre os artistas das diferentes gerações. Para muitos o hip hop não existe porque as pessoas não estão próximas. E, para outros, continuará a existir enquanto respeitarmos as mesmas regras. Quem tem razão? É algo interessante no filme: ver pessoas que pertencem à mesma cultura com uma opinião bastante diferente. Enquanto realizadores sentimos necessidade de abordar esta questão.
Há um aspeto muito interessante no filme que é o caráter quase didático, no bom sentido, de alguns depoimentos que recolheram entre os artistas. Eles explicam o seu método de trabalho...
O caracter didático é, sem dúvida, um dos pontos-chave do filme, embora seja algo que não tenhamos intencionalmente provocado. Ambos aprendemos imenso durante a viagem e isso foi algo que tentámos transmitir – até porque chegamos a ter entrevistas com quase três horas. Vários temas foram abordados nestas conversas. Ficamos fascinados com os diferentes processos criativos dos artistas. Cada um cria à sua maneira com base na sua personalidade e nas suas rotinas. O método de trabalho varia de pessoa para pessoa, de vertente para vertente, de geração para geração. Colocamos isso no filme porque achamos realmente interessante. E, como consequência, existe um papel didático nisso. O nosso objetivo foi sempre criar uma obra cinematográfica interessante, que fugisse do típico estilo documental televisivo e que se tornasse numa peça digna de ser recordada daqui a uns anos. Compreendemos o papel educacional, antropológico e social que possa eventualmente ter. Mas desde inicio que o nosso principal objetivo foi fazer um bom filme.
Outra questão recorrente do filme é o da evolução do hip hop dentro do país. Neste sentido vocês encontram otimistas, para os quais "tudo é válido", e outros que salientam a perda da profundidade poética, política e formal de muitos "rappers". Como vêem esse fenómeno da massificação de um movimento cultural que teve muitas dificuldades em se afirmar no início?
Há uma frase que consideramos importante no filme e que, porventura, descreve um pouco estes últimos anos, ou seja, "tudo foi transformado". O filme mostra essas transformações e as evoluções que as diferentes vertentes foram atravessando. Hoje a cultura hip hop de certo modo popularizou-se e, talvez, aquela vertente que melhor reflete isso é o rap. É o estilo que encabeça os maiores festivais de música e é o mais ouvido no mundo inteiro nos serviços de "streaming". As consequências, positivas e negativas, que isso trouxe são naturalmente imensas. Ao início os artistas não eram reconhecidos, as condições técnicas eram baixas, os salários igualmente baixos ou inexistentes. O facto de todos estes pontos se terem invertido acarretou várias mudanças: de um lado, irá sempre haver quem se aproveite para atingir fins financeiros e desvalorize os valores e as doutrinas que regem a cultura. Por outro, no entanto, trouxe melhores condições a todos aqueles que realmente se importam e se preocupam com estes pilares. A discussão não é nova: se analisarmos a história da cultura já era discutido ao início e certamente continuará a ser durante as próximas décadas.
Optaram por não usar apenas música de artistas de hip hop, mas também uma banda sonora mais tradicional, mais atmosférica...
A banda sonora tem um papel crucial no filme: ambos somos bastante exigentes e nós queríamos ter a música certa nos momentos adequados. Tivemos a oportunidade de trabalhar com artistas que construíram uma sonoridade sublime para a obra. É o caso do António Lopes Gonçalves, que nos transporta para um Portugal quase imaginário através da sua guitarra; dos SleepinPatterns X Lost Soul, que criaram a textura para a maioria do filme, reforçando as emoções, as palavras e toda a componente imagética existente; e os SillabnJay Fella trouxeram a voz e uma mensagem para uma música que faz uma ligação enorme com o filme e tem várias pistas na letra sobre uma das temáticas do "Hip to da Hop". A textura sonora criada agradou-nos tanto que decidimos lançar um álbum de originais depois da estreia. Ver este filme a dar origem a outros projetos é algo que nos satisfaz bastante e é algo que gostaríamos de continuar a fazer.
Comentários