"Simbolicamente, ressuscitámo-lo", disse à France-Presse o realizador espanhol Fernando Trueba, acompanhado do ilustrador e designer Javier Mariscal, sobre o pianista brasileiro Tenório Jr, desaparecido na Argentina, protagonista da sua animação "Dispararon al pianista" ["Atiraram no pianista" em tradução livre], que decorre no Rio de Janeiro da era de ouro da Música Popular Brasileira.
A entrevista aconteceu no Festival de Cinema de San Sebastián, que decorre entre 22 e 30 de setembro nesta cidade do norte da Espanha, e que tem a animação como um dos atrativos da mostra oficial, ainda que fora de competição.
Os dois artistas repetem a parceria de "Chico & Rita", outra animação, desta vez ficcional, em homenagem à música cubana.
Trueba, um madrileno de 68 anos, vencedor do Óscar o Óscar em 1992 de Melhor Filme Estrangeiro (atualmente Filme Internacional) por "Belle Époque", descobriu Francisco Tenório Junior (1941-1976) por acaso.
"Escutei um piano" num antigo disco reeditado.
"Ouvi este homem, olhei para ver se era um dos conhecidos habituais e encontro um nome que para, nós, espanhóis é muito curioso, que é Tenório", o Don Juan da literatura espanhola, "e me pergunto quem é".
"Queria saber mais sobre ele, e ver por onde andava e o que fazia, e percebo que este homem não andava em nenhum lugar, nem fazia nada, e aí encontro a notícia do seu desaparecimento", relatou.
Colorir sentimentos
Tenório desapareceu uma noite de 1976 em Buenos Aires, após deixar a sua amante no quarto do Hotel Normandie para comprar sanduíches, depois de um espetáculo com Vinícius de Moraes.
Por pouco mais do que o seu aspeto de esquerdista, este pai de cinco filhos foi sequestrado, torturado na Escola Superior de Mecânica da Armada (Esma) e assassinado com um tiro na cabeça pelo fuzileiro Alfredo Astiz, o "anjo da morte", para ocultar o absurdo da sua prisão.
Com a câmara na mão, Trueba foi entrevistando todos aqueles que pudessem explicar-lhe alguma coisa sobre o músico: a sua viúva, os seus filhos, a amante e grandes nomes da música brasileira, de Caetano Veloso a Milton Nascimento, passando por Toquinho e Gilberto Gil.
Marical, criador da mascote das Olimpíadas de Barcelona, passou tudo para o desenho e deu-lhe nova vida, com uma recriação instigante, colorida e luminosa do Rio dos anos da Bossa Nova, em contraste com uma Buenos Aires no início de uma ditadura ameaçadora, a preto e branco.
As entrevistas que Trueba trouxe, conta Mariscal, narravam "recordações de uma personagem, movimentos variados, assustadores, maravilhosos, de paixão ou de angústia, e tínhamos que decidir como tratá-los" em desenhos.
Nesse caso, "a cor é uma ferramenta fundamental, tem a ver com que paletas usar para que os sentimentos se apoiem na cor, que é algo muito perto do musical", explicou o ilustrador de 73 anos.
"É mais fácil" trabalhar com atores de carne e osso
Trueba defende a escolha pela animação neste caso.
"A animação", explicou o realizador, "permite-nos uma credibilidade que o filme biográfico não tem e reviver alguém, algo que o documentário não permite, exceto que existam mil documentos sobre ele, que não é o caso de Tenório".
"Não gostaria de fazer um documentário sobre um desaparecido, alguém que não estava ali, exceto na boca de outros", disse. No entanto, com a animação, "simbolicamente, ressuscitámo-lo".
Trueba, com mais de 15 longas-metragens na carreira, explica que "é mais fácil o trabalho com atores" do que com desenhos.
"Quando o realizador faz uma animação, tem que fazê-la antes de começar a fazer", conta.
Assim, "no dia em que os animadores começam a trabalhar, já se tem de ter gravado o som, os diálogos, decidido o planeamento, quais serão os planos, os ângulos da câmara, enquanto num filme isso é decidido no processo da sua realização", conta.
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