No final de junho de 2021, Jake Gyllenhaal e Vanessa Kirby foram anunciados formalmente como os protagonistas de "Suddenly".
Em inglês e com um orçamento significativo de 26 milhões de euros, o projeto para a produtora francesa StudioCanal adaptava o livro “Soudain Seuls”, de Isabelle Autissier, descrito como um 'thriller' de sobrevivência sobre um casal que naufragava numa ilha perdida na costa do Chile e tentava sobreviver desesperadamente à fome, ao frio e aos elementos violentos, como Adão e Eva na Antártida.
Seria o segundo filme como realizador de Thomas Bidegain, um dos mais famosos argumentistas da França, colaborador do cineasta Jacques Audiard em “Um Profeta“, “Ferrugem e Osso” e “Os Irmãos Sisters", mas que também escreveu "Stillwater", de Tom McCarthy, que teve Matt Damon como protagonista.
Só que a versão que chegou aos cinemas da França em dezembro de 2023 chamou-se mesmo “Soudain Seuls” e é em francês, com os atores Gilles Lellouche e Mélanie Thierry: o projeto inicial caiu por terra de forma catastrófica por causa do comportamento de Jake Gyllenhaal, que também era um dos produtores.
O relato do que aconteceu em jeito de diário a partir da experiência do próprio Thomas Bidegain e da argumentista Valentine Monteil foi publicado na revista Technikart em dezembro, mas tornou-se um dos temas mais abordados pela imprensa francesa desde a semana passada, perante o silêncio da imprensa especializada nos EUA, quando "Quatro dias para enterrar um filme" ficou disponível 'online'.
Após os encontros por 'zoom', oito semanas antes do início da rodagem prevista para setembro de 2021, com o guarda-roupa pronto, os cenários prestes a serem construídos e, como conta Thomas Bidegain, um argumento "validado e revalidado [...] pronto para filmar", uma pequena equipa juntou-se finalmente para os primeiros ensaios em julho numa terra no meio do nada, ocupando um hotel deserto na Islândia, país onde ainda não entrara a COVID-19.
Quando Jake Gyllenhaal chegou, após uma viagem de seis horas de carro, que exigiu que não fosse "nem vermelho nem branco", com David Lindsay-Abaire, um argumentista vencedor de um Prémio Pulitzer para polir os diálogos em inglês, "convocou" os dois argumentistas e anunciou "Todas as pessoas nesta sala são extremamente talentosas, mas vamos ter de trabalhar. E manter uma mente aberta. Com o David, pensámos em muitas alterações..." antes de se lançar num "longo monólogo" em que disse coisas como "vamos ter de descobrir a verdade".
Seguiram-se quatro dias marcados por negociações e crescentes divergências artísticas de fundo, com Jake Gyllenhaal a criticar "cada cena, cada diálogo, cada vírgula", agravadas por comportamentos erráticos e extravagantes, ataques de raiva e paranoia com a pandemia.
Ao terceiro dia, conta-se que o ator foi passear sozinho pela natureza e encontrou uma égua. Quando regressa à sala dos argumentistas, começa a falar sobre a comunhão com a natureza e sugere que o tema do filme deve ser o "amor pela natureza".
"Rapidamente, ele coloca um discurso da Greta Thunberg no seu computador, com música de rock em fundo. Durou um quarto de hora", recorda Thomas Bidegain, que acrescenta que o ator começou a chorar e a comentar as suas emoções: "Estou a chorar, estou a chorar, são lágrimas a sério".
Foi "a maior gargalhada da minha vida", comenta a argumentista Valentine Monteil sobre a sua reação, mesmo com a máscara colocada, ao momento em que o ator "declara que tudo tem de ser reescrito, todas as declarações de amor devem ser declarações à natureza. Vejo o Thomas a dizer para si mesmo que vai perder os seus 26 milhões. Ele inclina-se então na minha direção e diz: 'Como é que se diz 'ser fo****' na Islândia?' Porque foi exatamente isso que aconteceu…”.
Nessa altura, Vanessa Kirby decide intervir para dizer que a personagem do colega deve morrer no fim, que "Suddenly" é um filme feminista e o que está escrito "não é suficientemente moderno, é demasiado Disney". E recusa fazer o final que está escrito antes de começar também a chorar, "enquanto o Thomas percebe que ela se está a gravar a si própria com o seu iPhone" e pensa "'É o seu momento'. O Jake parece olhar para ela com desprezo".
Pela sua parte e na França, o prestigiado produtor Alain Attal recusa alterar o argumento aprovado pelo estúdio para um filme que já está vendido "para 20 territórios".
Ao quarto dia e depois de Thomas Bidegain levar toda a equipa a descobrir as incríveis paisagens do local, o ator mostra-se mais entusiasmado e decide despir-se para nadar no Oceano Atlântico com temperaturas à volta dos três graus ("Quando vejo o mar, tenho de nadar no mar", explicou).
O cineasta também volta a ter esperança que tudo vai correr bem depois de uma nova leitura em voz alta do argumento: "Quando eles representam, tudo ganha vida e torna-se incrivelmente poderoso. É comovente ver dois grandes atores abordarem o que escrevemos".
Mas segundo o artigo, o ator principal regressa ao confronto e ao tema da "verdade do filme" depois do jantar, antes de saber que os operários que vão construir os 'sets' chegam no dia a seguir e ter "um ataque de raiva": diz que têm de dormir nos carros para não trazerem a COVID-19 para o hotel, começa a gritar que não quer que existam cenários e exige ver os planos de construção antes de dizer que são todos incompetentes e ameaçar abandonar o projeto.
Cansado com quatro dias de divergências, Thomas Bidegain perde a paciência e responde-lhe para seguir em frente. Na manhã seguinte, telefona ao seu produtor para contar o que se passara: Alain Attal ouve o suficiente e manda cancelar tudo.
Recorda o cineasta: "Vou falar com o Jake e concordarmos que não vale a pena persistir, as nossas visões divergem demasiado. Não vamos conseguir filmar em setembro. Vou dar um passeio com a Valentine num glaciar. Telefono aos financiadores, aos meus amigos americanos que me contam coisas novas sobre o Jake. Talvez não tenha sido suficientemente firme com ele, acho que queria um confronto mais forte, mas não trabalho assim... Enfim, acabou e os 26 milhões voaram".
Quando regressam, Thomas Bidegain e Valentine Monteil já veem o carro com o ator a partir na direção contrária. A despedida da Islândia foi "uma grande festa" com os operários no 36.º andar do hotel e muita comida e álcool à mistura.
Mas o "epílogo" da história é outro, pois Vanessa Kirby entrou em contacto com o cineasta algumas semanas mais tarde e quando se encontraram em Paris, propôs comprar os direitos do argumento para avançar só com Jake Gyllenhaal.
"Falo com o Alain Attal sobre isso e sugiro que lhos venda. Ele responde-me: 'Nunca na vida, eles que vão à me***. Vais reescrever em francês e vamos fazê-lo com grandes atores franceses'", conta.
E assim "Suddenly" tornou-se no "Soudain Seuls" e com Gilles Lellouche e Mélanie Thierry, com um orçamento previsivelmente mais modesto e que chegou aos cinemas franceses a 6 de dezembro com elogios da crítica.
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