Não se via nada assim desde que a pandemia atingiu os cinemas: duas super produções estreiam no mesmo dia, de dois realizadores de prestígio e com grandes elencos, e histórias que estão nos antípodas uma da outra.

De um lado está "Barbie", uma comédia fantástica com duas horas e que custou 145 milhões de dólares baseada na icónica boneca da Mattel, realizada por Greta Gerwig e com Margot Robbie e Ryan Gosling, apoiados por Kate McKinnon, Issa Rae, Rhea Perlman, Will Ferrell, Michael Cera e Simu Liu; do outro lado está "Oppenheimer", um épico biográfico em registo de 'thriller' sobre J. Robert Oppenheimer e a criação da bomba atómica com três horas e um orçamento de 100 milhões, dirigido por Christopher Nolan e com Cillian Murphy a ter à sua volta atores como Robert Downey Jr., Emily Blunt, Matt Damon, Florence Pugh, Kenneth Branagh, Casey Affleck e Rami Malek.

O que era para ser apenas uma estratégia de contraprogramação e mais uma rivalidade nas bilheteiras evoluiu para um fenómeno na internet chamado "Barbenheimer", com 'memes' e posters virais em tom de humor que juntam os dois filmes tão radicalmente diferentes.

Mas o "Barbenheimer" também se tornou um inesperado movimento de "militância" cinéfila: em vez de escolher um, milhares de pessoas tencionam apoiar os dois filmes nos cinemas, vendo-os no mesmo dia.

Não se trata de algo menor: baseado nas reservas de bilhetes, a associação que junta os proprietários das salas de cinema nos EUA e Canadá projetou esta quarta-feira que mais de 200 mil espectadores farão a "sessão dupla". Ou seja, vão passar pelo menos cinco horas nas salas para ver os dois filmes que, já está confirmado, estão entre os mais aclamados até agora de 2023.

Não se sabe exatamente quando nasceu aquilo que Paul Dergarabedian, analista de comunicação da empresa especializada Comscore, descreveu à revista Variety como "o sonho tornado realidade dos profissionais de marketing de filmes".

E o que consta é que Christopher Nolan não terá gostado da "contraprogramação" propriamente dita: especulou-se que a Warner Bros. decidiu colocar "Barbie" no mesmo fim de semana a meio de julho que se sabe ser o preferido do realizador como uma "vingança" por este ter abandonado o estúdio a que esteve ligado durante quase 20 anos por causa da sua decisão de lançar todos os filmes de 2021 ao mesmo tempo nos cinemas e na plataforma HBO Max ("Oppenheimer" é distribuído pela Universal).

O que se pode dizer é que Tom Cruise ajudou a a transformar a rivalidade e contraste em irmandade cinéfila ao fazer-se fotografar com Christopher McQuarrie, realizador do seu "Missão Impossível - Ajuste de Contas: Parte Um", com bilhetes na mão e ao pé dos cartazes de "Indiana Jones e o Marcador do Destino", "Oppenheimer" e "Barbie".

Um grande defensor da indústria e da experiência de ver filmes no grande ecrã, que trouxe de volta públicos de todas as idades no verão de 2022 para ver “Top Gun: Maverick”, o ator dava expressão à convicção de que estes filmes (e o seu) são vitais para a saúde financeira dos cinemas e da própria indústria, ainda a recuperar do impacto da pandemia, e para a própria temporada de verão de 2023, depois de várias estreias abaixo das expectativas (a que se juntou, dias depois, do quinto "Indiana Jones").

Alguns dias depois, Margot Robbie e Greta Gerwig fizeram o mesmo ao lado dos cartazes de "Indiana Jones", "Oppenheimer" e, claro, "Missão Impossível". A conta oficial de "Oppenheimer" partilhou igualmente a mensagem do ator.

Há cerca de duas semanas, o "Barbenheimer" explodiu com um poster épico a juntar os atores e as temáticas dos filmes.

O fenómeno nunca mais parou e as equipas dos filmes abraçaram-no com apoio mútuo nas entrevistas e redes sociais. E até se debate qual se deve ver primeiro (Tom Cruise revelou ao The Sydney Morning Herald que irá ver "Oppenheimer" na sexta-feira, dia da estreia, e "Barbie" no sábado).

"Isto não tem precedentes. Aumenta o potencial para estes dois filmes únicos que aproveitam o fenómeno", explicou o mesmo Dergarabedian posteriormente à France-Presse.

Cillian Murphy e Christopher Nolan

Independentemente do que pense em privado, o próprio Nolan reconheceu publicamente que as duas estreias em simultâneo representam um mercado de cinema saudável, como acontecia antes da pandemia, e quem ganha é o público.

"O verão, num mercado saudável, está sempre preenchido, e fazemos isto há muito tempo. Acho que aqueles de nós que se preocupam com os filmes, estávamos realmente à espera de ter outra vez um mercado preenchido, e agora está aqui e é fantástico", disse Nolan recentemente ao IGN.

A mesma opinião foi manifestada por Cillian Murphy: "Acho que é ótimo. Eu irei ver 'Barbie'. Mal posso esperar. Acho que é ótimo para a indústria e para os espectadores termos dois filmes espantosos de realizadores espantosos a estrear no mesmo dia. Pode-se passar um dia inteiro no cinema, o que é melhor do que isso".

"Adoro que as pessoas estejam a falar sobre ir ver dois filmes num fim de semana", acrescentava Matt Damon, recordando que "o Ben [Affleck] e eu costumávamos ir ver dois filmes todos os fins de semana e acho que as pessoas devem fazer isso", enquanto Emily Blunt acha que "é incrível o interesse na variedade do que está disponível".

A visibilidade mediática surge no momento certo e aumenta as previsões de receitas de bilheteira para as estreias: "Oppenheimer", por ter três horas e um tema "adulto" com classificação etária "R" (maiores de 16 anos), a passar de 40 para 50 milhões de dólares entre sexta-feira e domingo em 3600 salas e beneficiando do monopólio das salas IMAX em todo o mundo durante três semanas.

O seu veredito comercial será decidido não pelos três primeiros dias, mas pelo comportamento nas próximas semanas, ao contrário de "Barbie", que pelo género, duração e a classificação PG-13 (para adolescentes), ninguém tem dúvida que será a maior estreia do fim de semana: para 4200 salas, o estúdio é conservador e projeta 75 milhões de dólares, mas os analistas vão dos 95 aos 110 milhões, e alguns estúdios rivais e exibidores acreditam que pode arrecadar 140 milhões.

Uma campanha irresistível

Margot Robbie

Até agora, as informações conhecidas de "Barbie" andam à volta de que conta a história da saída da boneca loira da Barbieland rumo ao mundo real, acompanhada por Ken, o seu eterno namorado. E ao contrário do habitual, as imagens mantêm o suspense: será uma alegoria feminista ou uma simples comédia?

Vale a pena recordar que Greta Gerwig vem do cinema independente e produz filmes de facetas feministas, como "Frances Ha" (2012) ou a história da jovem rebelde "Lady Bird" (2017). Adaptou outro clássico em 2019: "Mulherzinhas", de Louisa May Alcott.

Em "Barbie", optou por cenários espetacularmente 'kitsch', com todos os possíveis clichés associados a Barbieland: uma casa rosa brilhante, a praia californiana, os carros convertíveis...

Mas o filme chega depois de uma intensa e viral campanha de marketing (dos trailers aos clips, passando pelas passadeiras vermelhas das antestreias, com Margot Robbie a desfilar "looks' de Barbie ao longo das décadas) e com a promessa de uma releitura pop sobre a história da boneca mais famosa do mundo.

Além disso, de chinelos a patins, escovas de dentes, máscaras faciais, roupas para bonecos e humanos ou brinquedos insufláveis para piscina, os produtos inspirados coloriram todo o planeta de rosa. A Mattel concedeu mais de cem licenças e capitalizou com a assinatura de todo o tipo de contratos, desde moda e produtos de beleza até acessórios.

Gap, Microsoft (Barbie XBox), Forever XXI, Ulta Beauty, Hot Wheels (marca Mattel), Chevrolet e Progressive (seguros) foram algumas das muitas marcas selecionadas. A Mattel até fechou contrato com a sua concorrente Hasbro para produzir o jogo Monopoly Barbie. Em troca, a Mattel produzirá uma edição com os Transformers do jogo de cartas Uno.

"Há 30 anos que cubro este setor e nunca vi nada parecido. A Barbie está em todo o lado!", contou Dergarabedian

"Barbie é feita sob medida para o marketing. É perfeita porque é um brinquedo, um produto e além disso, um estilo de vida e uma cor", acrescentou.

A cor é o rosa em todas suas tonalidades, com uma predileção pela referência Pantone 219 C, com fluorescentes. A quantidade de tinta rosa utilizada nos cenários do filme chegou a provocar uma escassez a nível mundial, contou uma funcionária da produção.

"A Mattel e a Warner criaram uma campanha incrível. É irresistível", elogiou o analista.

A distribuição e a equipa de rodagem somam 50 nomeações aos Óscares, e oito estatuetas, segundo o estúdio Warner.

Para a banda sonora, a produção também não economizou nos nomes: Dua Lipa, Lizzo, The Kid Laroi e o duo Nicki Minaj-Ice Spice (com Aqua) interpretando o sucesso "Barbie girl" do grupo dinamarquês de 1997.

A única mancha na campanha foi a polémica proibição no Vietname por causa de um mapa alegadamente mostrava as reivindicações da China sobre o disputado Mar do Sul da China (e a estreia nas Filipinas só acontece com essas imagens borradas).

O mapa controverso

O estúdio sempre defendeu que o mapa era um "desenho de giz de cera infantil" da jornada fictícia da Barbie desde a Barbieland até ao 'mundo real' e "sem intenção de fazer qualquer tipo de declaração" sobre a chamada linha de nove traços, que a China usa para justificar as suas reivindicações marítimas.

Já na França, o cartaz do filme provocou reações virais pelo que alguns consideram uma alusão sexual e uma ação deliberada da distribuidora.

Segundo a revista Hollywood Reporter, “Elle peut tout faire. Lui, c’est juste Ken” ("Ela pode fazer qualquer coisa. Ele é apenas o Ken") recorre ao uso de uma expressão muito popular e com duplo sentido no país, onde "ken" é uma versão encurtada ao longo dos tempos do termo "forniquer" [fornicar], o que faz com que o cartaz anuncie algo como "Ela pode fazer qualquer coisa. Ele só sabe f****".

“É definitivamente deliberado; é impossível que alguém que fale francês não tenha percebido o trocadilho obsceno. Realmente acaba por ser genial que tenham encaixado isso", disse à revista um executivo de marketing francês de um estúdio concorrente.

Deliberado ou "deslize", o estúdio nada disse na reação, mas não escondeu o prazer pela atenção: "A especulação à volta da campanha de marketing de 'Barbie' mostra que há um alto nível de atenção e grande entusiasmo do público à volta da futura estreia do nosso filme na França. Mal podemos esperar que o público de todo o mundo veja o filme".

Pelas previsões, serão mesmo muitos milhões de espectadores...

TRAILER "BARBIE".

TRAILER "OPPENHEIMER".