“Metrópolis” tem quase 100 anos e um contexto social e político que bastariam para nos fazer olhar para ele tanto tempo depois. Mas o enredo e a técnica acrescentam interesse ao filme de Fritz Lang. O que se retira dele parece ficar a cargo de cada espectador. E houve alguns – como Adolf Hitler – que gostaram bastante do resultado, para horror do realizador.
As primeiras cenas de “Metrópolis” (1927) situam-nos de imediato na história: estamos numa cidade futurista, de edifícios altos e geometrias imponentes. A realidade não nos é assim tão estranha agora, mas a familiaridade advém do caminho que este filme fez: por um lado, influenciando a forma como a ficção científica se construiu no imaginário dos espectadores (o robot-mulher que vamos conhecer mais à frente faz lembrar C-3PO); por outro, porque a História fez com que soubéssemos que existimos como massa explorada por um sistema opressor.
É nele que pensamos ao ver o exército de trabalhadores desfilarem maquinalmente pelo submundo de “Metrópolis”. Entram nos elevadores que os transportam, dirigem-se inanimados para os seus postos de trabalho, tombam inertes perante a exaustão física que as tarefas provocam. São eles quem faz mexer o mundo das máquinas, com a força das suas mãos. Acima daquele submundo, para lá das catacumbas, existe todo um universo paralelo de riqueza, ostentação e excessos. Incitados, os trabalhadores hão de revoltar-se contra as forças que os exploram, num cenário de luta de classes.
Mas esta história marxista é apenas uma das linhas de “Metrópolis”. Passando rapidamente pela veia romântica, “Metrópolis” gira em torno de Freder (Gustav Fröhlich) e Maria (Brigitte Helm). Freder é o filho privilegiado de Joh Fredersen (Alfred Abel), engenheiro e senhor daquela cidade futurista, encantando-se por Maria quando ela consegue levar até ao seu mundo de cores claras e texturas nobres um grupo de filhos dos trabalhadores, magros e sujos, que lhe apresenta como sendo seus irmãos. O cenário choca Freder, que desce aos corredores onde se faz o trabalho e chega a trocar de roupa e vida com um operário, parte de um plano maior para encontrar Maria e suavizar a mão pesada do pai. Quando Maria é capturada por Rotwang (Rudolf Klein-Rogge), inventor que trabalha para Fredersen, Freder tenta resgatá-la.
Este inventor, qual cientista alucinado, faz lembrar a personagem de dr. Frankenstein e também é homenageado pelo dr. Strangelove de Kubrick, ambos com uma luva a substituir uma mão. É ao falar com Rotwang que ficamos a conhecer o arco da personagem de Fredersen, que deve a sua atitude implacável à morte da mulher. O inventor trabalha para ele mas vai seguir os seus próprios planos quando Fredersen dita que faça do robot que havia construído um engodo para manipular os trabalhadores, dando-lhe a imagem de Maria.
Cabeça, mãos e coração
Maria é uma espécie de líder espiritual. Fala aos trabalhadores de uma história antiga em que o poder da cabeça e a força das mãos não conseguem entender-se, mas chegará um intermediário – o coração – que irá finalmente ligá-los. Maria conta-lhes o mito da Torre de Babel e é como se Freder estivesse a ser talhado para o papel de tradutor que irá construir a ponte entre o pai e os “irmãos”.
Percebe-se porque é que Hitler e os seus dirigentes ficaram fãs do cinema de Fritz Lang, convidando-o mesmo, anos depois, a liderar a propaganda cinematográfica do regime. Os ideais da força do trabalho, aqui endeusados por uma história romântica em que o herói vence as dificuldades e recolhe o apreço das massas, eram um dos pilares do filme. Que a sua centralidade tenha sido intencional, fica por perceber. Sabe-se apenas que Thea von Harbou, mulher de Fritz Lang e guionista de “Metrópolis”, era apoiante e até militante do partido nazi alemão.
Não é absolutamente claro o nível metafórico do filme ou, pelo menos, a forma como ele foi compreendido pelo público à data da estreia. A questão é levantada por uma outra linha narrativa aqui presente, a religiosa. Além de Babel e da insistência de Maria a referir-se às crianças e aos trabalhadores como “irmãos” – um apelo à fraternidade que a religião chama a si –, aquela mulher torna-se quase uma profeta porque Freder acaba mesmo por ser a peça-chave para deslindar o conflito. De resto, depois de Maria ser capturada por Rotwang e o seu robot-mulher ser destruído, tenta escapar-se das mãos do inventor. Na fuga, agarra-se à corda de um sino que parece o de uma igreja e é só quando ele toca que as massas reparam na sua presença e se apercebem de que haviam confiando numa Maria falsa, que os incitou à revolta e à violência.
A revolta ganha proporções bíblicas. Os trabalhadores são avisados de que a violência pode prejudicá-los porque, destruindo a central onde trabalham, o seu submundo será inundado. Ora, os filhos dos operários encontram-se nessa parte da cidade futurista e só conseguem escapar com o auxílio de Maria, Freder e o seu ajudante, Josaphat (Theodor Loos). Numa sucessão de cenas apocalípticas, aquela cidade geométrica e pesada vai desabando, pedra por pedra.
Estas marcas mostram que Lang teve a intenção de inscrever uma veia religiosa na história. Não deixa de ser curioso que Marx, que considerava a religião como o ópio do povo, conviva com ela em “Metrópolis”, ainda para mais de forma tão harmoniosa. E que nada disto tenha soado estranho aos dirigentes nazis.
“Metrópolis” é intrincado nas suas mensagens políticas e sociais e consegue fazê-lo juntando mais elementos à receita final. No que diz respeito à influência artística, a personagem de Rotwang e o robot acentuam o elemento de ficção científica do filme, assim como a norma do expressionismo alemão que impõe a visão do artista. Foi para trazer essa visão ao grande ecrã que Fritz Lang e a sua equipa conseguiram inovar nas técnicas usadas, de uma forma inovadora, que ainda hoje nos deixa boquiabertos. Algumas cenas foram filmadas com artifícios que desfocam os atores e os cenários. Noutros momentos, a enorme cidade que aparece diante dos nossos olhos é um modelo pequeno e, nela, os carros movimentam-se em stop motion.
Quando o robot-mulher assume a faceta de Maria, Fritz Lang mostra-nos uma máquina enorme, instalada no laboratório do inventor, onde as superfícies metálicas começam a adquirir feições humanas. Esse processo foi conseguido através da exposição múltipla do mesmo pedaço de fita, no local das filmagens, gravando ora o robot no seu fato metálico, ora a atriz que lhe daria forma. A dupla exposição foi utilizada noutros momentos do filme, mas talvez a cena no laboratório seja o melhor exemplo do espírito futurista das técnicas de “Metrópolis”.
Cem anos depois, qualquer episódio de “Black Mirror” faria muito melhor, mas pensemos que “Metrópolis” foi feito numa altura em que se estava ainda a experimentar com o som no cinema e que os filmes a cores só se massificariam mais tarde.
Já que se fala de som, importa dizer que a composição original para as peças que acompanham o filme é de Gottfried Huppertz e não nos fazem sentir qualquer falta de diálogo. Os protagonistas agarram de imediato, com interpretações exageradas mas convincentes e expressões faciais dramáticas mas eficazes. A história é também bastante preenchida e os acontecimentos sucedem-se de forma a entrarmos rapidamente no ritmo mecânica daquela cidade que nunca para.
Diz-se que Fritz Lang seguia esse mesmo método de trabalho, sendo demasiado exigente com os atores. Durante a gravação de “Metrópolis”, que se estendeu para lá de um ano, Brigitte Helm não teve duplas e executou todos os takes que Lang exigia que fossem repetidos, inclusivamente quando tinha de usar o fato pesado e quente de robot, que lhe chegou a provocar ferimentos.
Não é difícil imaginar Lang como um realizador obstinado em concretizar a sua visão, até porque as histórias da filmagem contam que ele exigiu milhares de figurantes carecas para integrarem o exército de trabalhadores da cidade. Diz-se também que exigiu aos figurantes longas horas de filmagem, dia após dia, mas que não foi difícil conseguir pessoas para integrarem o filme, uma vez que a economia do pós-guerra e da República de Weimar instalaram o desemprego como uma realidade penosa entre os alemães.
Redescobrir “Metrópolis” em 2008 e 2019
Aquele contexto social e político, que hoje reveste “Metrópolis” de interesse cultural, trouxe-lhe outras consequências na época, a mais imediata das quais foi a censura. Fritz Lang, que concebeu “Metrópolis” com quase três horas, teve de aceitar que fossem apresentadas versões muito mais curtas da sua obra-prima. O tempo ajudou a fazer com que o filme na íntegra se fosse perdendo e, só em 2008, um arquivista descobriu, na Argentina, uma versão quase completa. É surpreendente pensar que, só há cerca de dez anos, “Metrópolis” ganhou um novo sentido porque se preencheram muitas lacunas na história – ainda que não tenha sido possível recuperar algumas cenas, elas são descritas em texto.
Apesar de ter atravessado um século com várias versões, “Metrópolis” continua atual. É por isso interessante a proposta do Teatro São Luiz, em Lisboa, que estreou o filme em Portugal e que volta a passá-lo este fim de semana (15 a 17 de novembro), convidando o pianista Filipe Raposo a criar uma partitura original para o filme a partir do conceito das grandes cidades e das suas características.
A cidade futurista que Fritz Lang projetou não está longe do que são as nossas cidades, hoje em dia. Deixamos de falar delas como um futuro distante, porque existem como realidade premente. A leitura política acrescentaria uma conclusão sobre a submissão das massas trabalhadoras às elites abastadas. A religião diria que “Metrópolis” ensina a força da fraternidade e o poder da redenção. E Fritz Lang? Ficaria ele surpreendido com a longevidade desta história? Ficaria esmagado pelo peso das nossas selvas de betão?
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