Com estreia marcada para o próximo sábado, no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra, “Reparations Baby!” é uma criação que mistura política, história e humor em formato de ‘game show’, porque é “um bom contexto também para lançar factos, dados históricos, estatísticas”, contou Marco Mendonça, no final de um ensaio.

A peça, escrita e dirigida por Marco Mendonça, e apresentada com produção do Teatro Nacional D. Maria II, convida o público a refletir sobre as reparações coloniais portuguesas, mas fá-lo através do riso, aqui utilizado como uma ferramenta de provocação, mas também de aproximação.

“Interessa-me abrir um caminho para a reflexão depois do riso. Ou seja, podemos rir destas situações, podemos rir destes constrangimentos, mas por trás do riso também temos a responsabilidade de perceber que é de um assunto sério que se trata, podemos rir mas sabendo que há coisas que não têm piada nenhuma”, explicou Marco Mendonça.

A inspiração para o espetáculo surgiu de um momento recente e polémico da política portuguesa, a declaração do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que há cerca de um ano admitiu a necessidade de Portugal assumir responsabilidades históricas pelo seu passado colonial.

Foi a partir dessa provocação pública que Marco Mendonça começou a explorar a possibilidade de transformar esse debate num espetáculo.

“Foi uma escolha relativamente natural (…), interessou-me como uma possível temática a abordar numa próxima criação. Entretanto, surgiu esta oportunidade, a convite do Pedro Penim, do Teatro Nacional Dona Maria II, de fazer uma criação nova”, contou, confessando: “Como eu gosto de complicar a minha própria vida nestas situações, mesmo tendo bastante pouco tempo para o fazer, decidi lançar-me a mais um texto, mais uma criação de raiz”.

Apesar da sua forma ligeira, “Reparations Baby!” mergulha em questões de fundo, como a desigualdade racial, a exclusão estrutural e a invisibilidade das pessoas negras nos meios de produção artística.

Em palco há um palanque com “três concorrentes afrodescendentes, em que o que ganhar pode mudar a vida”, como explica a apresentadora, uma mulher jovem branca, no estilo histriónico que caracteriza muitos destes modelos televisivos.

O espetáculo consiste em quatro rondas de perguntas relacionadas com questões raciais e com o passado colonial português, como, por exemplo, dizer quantos milhões de africanos foram transportados como escravos em navios com bandeira portuguesa, ou qual o ano da inauguração no Palácio de Cristal da primeira exposição colonial portuguesa.

Um dos concorrentes, perante a quantidade de respostas erradas que deu, argumenta, a dada altura, que esse tipo de informação não lhe foi ensinado nas aulas de História, e sim coisas como os nomes e cognomes dos reis de Portugal.

Entre cada ronda de perguntas há um intervalo, que revela os bastidores do programa, em que moldes foi pensado e construído e “que mostra como poderia correr mal, já que foi pensado por pessoas brancas para concorrentes negros”, segundo Marco Mendonça.

No intervalo, um dos concorrentes repara que são “os únicos negros no edifício”, dando origem a uma troca de impressões sobre a luta por mais representatividade, pela dificuldade de encontrar quem os quisesse patrocinar e para a quase ausência de dinheiro para um “cenário de jeito”.

“Isso era uma coisa que à partida também me interessava espelhar aqui no espetáculo, o momento em que as pessoas negras percebessem que são as únicas do edifício, porque isto é efetivamente uma coisa que acontece”, afirmou o encenador.

Ou seja – explicou -, “mesmo quando existe uma ideia de diversidade ou de visibilidade de pessoas negras convidadas para certos projetos, é muito fácil percebermos que pessoas negras são convidadas para certos contextos, justamente pelo facto de serem negras e não pelo facto de serem bons profissionais ou por terem competências na sua área”.

“Parece que há mais oportunidades, mas são sempre em contextos muito específicos”, sublinhou.

O humor surge assim como um caminho de duas vias, em que por um lado aproxima o público e entretém, mas, por outro, também incomoda, ao ponto de Marco Mendonça admitir que certas cenas continuam a causar-lhe desconforto, mesmo após vários ensaios.

“Há coisas que ainda me são desconfortáveis de ouvir”, mas esse desconforto “é importante, é o que nos faz agir”.

Apesar de não acreditar que o espetáculo tenha um impacto direto sobre decisões políticas ou institucionais, Marco Mendonça espera que “Reparations Baby!” alimente uma conversa mais profunda sobre o que significa, hoje, fazer justiça histórica.

“A questão da reparação não é apenas uma questão de uma restituição monetária ou material aos países que foram antigos territórios ocupados. Acho que começa também por uma reparação interna do próprio país, Portugal, reconhecer as diferenças que existem dentro de si mesmo, as dinâmicas de poder viciadas dentro de si mesmo, e reconhecer que é preciso ser feito um grande trabalho no sentido de tornar a sociedade portuguesa uma sociedade mais justa e igualitária.”

Entre o riso e o incómodo, a peça propõe-se a que o público saia do teatro diferente de como entrou: “Se essa for a conversa que surge depois de as pessoas verem o espetáculo ou se o espetáculo ajudar a alimentar mais esse debate, já fico contente, claro que sim.”

Com interpretações de Ana Tang, Bernardo de Lacerda, Danilo da Matta, June João, Márcia Mendonça, Stela e Vera Cruz, “Reparations Baby!” apresenta-se, depois da estreia, no Theatro Gil Vicente, em Barcelos, a 14 de junho, na Casa da Cultura, em Ílhavo, a 21 de junho, e no Teatro Variedades, em Lisboa, de 9 a 27 de julho.