De Bombaim a São Francisco, da Cidade do México a Berlim, de Seul a Chicago, de Nairóbi a Reiquejavique, as suas vidas entrelaçam-se opondo e confrontando as suas realidades pessoais e culturais. Uma aventura complexa, prismática, no mundo pós-moderno em 12 episódios para ver de um só fôlego.
Tenho que começar por confessar a minha desconfiança e afastamento quando li a sinopse e assisti ao primeiro episódio da série. Parecia tudo em demasia, tudo demasiado politicamente correto: toda a diversidade de género, orientação sexual, credo, raça, etnia e o que mais houvesse. Como dizem os norte-americanos: "everything but the kitchen sink".
Veio-me à memória uma acutilante e sardónica "mot-d’esprit" de Harold Bloom, onde o famoso crítico expressava: "Hoje, o que interessa, é que a protagonista seja uma lésbica esquimó de Cabo Verde". Cito de memória e talvez falhe nas exatas palavras; conquanto o sentido era esse. São poucas as atuais séries de televisão ou filmes que não incluam um de cada – et pluribus unum – ou um, que em si, represente várias facetas da sociedade contemporânea - ab uno disce omnes.
Porém, não havia razão para desconfianças. O que poderia ter sido uma explosão do politicamente correto poderá ter acabado por ser uma negação dos vaticínios de Bloom. Pois que se ter uma “lésbica esquimó de Cabo Verde” não é garante de uma boa obra, tê-la não é sinónimo de estarmos perante uma má obra.
E aqui “elas” são oito. Temos: Nomi Marksuma (Jamie Clayton) uma transgénero de São Francisco, filha de pais religiosos, que tem uma relação amorosa com uma lésbica afro-americana e cujo talento é uma enorme capacidade de modificação de programas e dispositivos informáticos com acesso interdito, vulgo hacking; Kala Dandekar (Tina Desai), uma hindu farmacologista, que tenta conciliar as suas crenças e tradições com a Índia contemporânea; Capheus (Aml Ameen), um queniano motorista de autocarro, fã de Van Damme, com um otimismo a toda a prova, a tentar manter-se íntegro num dos países mais corruptos do mundo, enquanto luta para providenciar uma boa vida à sua mãe seropositiva; Lito Rodriguez (Miguel Ángel Silvestre), o macho latino, galã de telenovelas mexicanas que, secretamente, mantém uma relação homossexual; Sun Bak (Bae Doona) uma mulher de negócios da Coreia do Sul, mestre em artes marciais, com uma enorme garra, mas desprezada pela família; Riley Blue (Tuppence Middleton), uma Dj da Islândia, emigrada em Londres e com um gosto por drogas ilegais; Wolfgang Bogdanow (Max Riemelt), um gangster alemão, cristão ortodoxo, com uma juventude pobre e difícil e um ódio patricida; e, por fim, Will Gorsk (Brian J. Smith), um polícia branco heterossexual de Chicago, sem nenhum dos preconceitos ou puritanismos que são apanágio dos WASPs (White Anglo-Saxon protestants) mas com um segredo obscuro.
Com tantas personagens, com vidas tão diferentes e de países com culturas tão distintas já seria difícil construir um bom argumento. Para mais, as suas vidas estão intimamente ligadas. É essa a ideia base da série: os “sensates” são como que mutantes com capacidades sobre-humanas de ligação emocional e mental entre si.
Os irmãos Wachowski e J. Michael Straczynski conseguiram, a nosso ver, cumprir o objetivo a que se propuseram. O resultado lembra as complexas estórias pessoais das inúmeras personagens de «Tales of the City», com o flaire mágico e encantatório de «Angels in America», a ação de «Charlies Angels»; e o sexo, nudez e violência de uma qualquer série da HBO.
Os Wachowski já nos tinham habituado a estes enredos intrincados envolvendo uma constelação de personagens, dos quais o filme «Cloud Atlas» (2012), será o melhor exemplo. Nesta obra cinematográfica, temos seis personagens em diferentes regiões e tempos, desenvolvendo-se a história de uma forma não-linear.
A passagem deste romance que é como um «mosaico pontilhista» – como lhe chamou o autor do livro, David Mitchell – para o cinema, terá dado uma certa experiência aos irmãos cineastas para levar a cabo este novo desafio.
Mas, desta feita, os Wachowski socorreram-se de um apoio extra. A eles juntaram-se, para dobar esta meada, o alemão Tom Tykwer, o australiano James McTeigue e Dan Glass. Tykwer já tinha colaborado com os Wachowskis em «Cloud Atlas»; Mcteigue, na trilogia «Matrix» (1999-2003) e em «V de Vendeta» (2006); e, a surpresa de Glass, responsável pelos efeitos visuais dos filmes dos irmãos cineastas, que agora se arroja na direção de um episódio da primeira temporada.
Sensates ou crianças índigo?
Este conceito de uma geração mais evoluída, quase mutante, não é propriamente novo. Se pularmos a enorme e incontornável referência dos X-men da Marvel, seja da banda desenhada, séries animadas ou dos vários filmes que têm chegado às salas de cinema nos últimos anos, há que ter em conta um outro conceito: o das crianças índigo e cristal. O conceito de “crianças índigo” não é, em rigor, científico, nem religioso. Está ligado ao movimento Nova Era (New Age), que surge nos finais da década de 60 do século passado, misturando e apropriando-se de conceitos metafísicos e religiosos de várias origens. Grosso modo, falava numa nova era, de clarificação do conhecimento interior, que viria substituir a Era Cristã.
Nesta nova fase surgiriam as crianças índigo que nascem no período compreendido entre meados da década de 70 e finais da década de 90. O conceito é lançado por Nancy Ann Tappe, uma parapsicóloga norte-americana, e vai sendo desenvolvido por outros autores que definem estas crianças como possuidoras de poderes especiais, nomeadamente, telepatia e empatia. A partir da década de 90, terá começado a surgir uma segunda geração com estas duas propriedades ainda mais elevadas: as crianças cristal. Os sensates serão um decalque da ideia das crianças cristal: fora as suas capacidades físicas e académicas adquiridas pela sua natural formação (o domínio das artes marciais de Sun Bak ou as habilidades de hacker de Nomi, por exemplo), o que os torna especiais é, de facto, o fortíssimo laço que os une sendo capazes de comunicarem e sentirem o que os outros sete pensam e sentem a milhares de quilómetros de distância.
Mas, para além deste lado mais fantástico, há na série uma reflexão sobre os problemas pessoais e desafios de uma geração no mundo contemporâneo que se diz globalizado. A principal questão será o choque entre a geração X e a geração Y, do qual os protagonistas fazem parte. A geração X, os baby-boomers, são hoje os pais da geração Y, aqueles que nasceram e cresceram numa época de grande prosperidade económica, onde se deram importantes avanços tecnológicos e o advento de um domínio do virtual enquanto sistema de interação social e mediática.
As balizas cronológicas destas duas gerações não são fáceis de estabelecer e aquilo que as define é mais complexo do que aqui se escreve. Porém, o que há a reter como traço mais marcante, será a diferente mundividência das duas gerações: se a X via os objetos de consumo como algo para durar; o trabalho, como empregos para a vida; as relações interpessoais como algo próximo e permanente; a Y, vê os objetos como descartáveis e sempre em upgrade; os empregos, como mutáveis e de constante formação; e as relações como transientes e mediadas pelas tecnologias. Este toca-e-foge, esta incerteza da geração Y é resolvida, nas personagens, pela sua fortíssima ligação entre si, que lhes dá um sentido de pertença e permanência que tanto anseiam. Dá-lhes também um sentido, em strictu sensu, do qual falaremos adiante.
É relevante notar que uma das personagens, o queniano Capheus, não pertence à geração Y. Mais do que ser definido meramente pela cronologia, este é um conceito de geração que se mede pela economia e se situa em meio urbano. Não fazem parte os que não possuem capital, os que têm trabalhos braçais ou tradicionais, os que vivem em meios rurais. Ao contrário das outras personagens, Capheus não tem conflitos com os pais (antes pelo contrário dedica a sua vida aos cuidados de uma mãe doente) e mantém um encantamento pelo mundo e um otimismo quase ingénuo. Todos os outros ou são flagrantemente desencantados ou têm dificuldades e relações conflituosas com os pais e/ou com o que a sociedade deles espera.
Seja por questões de tradição, crença ou identidade (com especial enfoque nas questões LGTB), todos eles vivem como peixes fora de água no seu próprio meio. Capheus é o único verdadeiramente pobre. O alemão Wolfgang, nasce num meio menos privilegiado, mas o mundo do crime dá-lhe dividendos mais que suficientes. Quanto aos restantes, são, confortavelmente, da classe média alta ou alta. A crise económica não existe aqui. Se não fosse pelas tecnologias de última geração (telemóveis, computadores, etc.) que surgem na série diríamos que a ação se passava numa altura anterior à crise financeira mundial de 2007-08. Teria sido interessante que pelo menos uma das personagens se deparasse com estes novos desafios do Primeiro Mundo pós-crise. Mas talvez fosse apenas acrescentar mais uma faceta a esta forma já tão poliédrica.
As massas resistem ao sentido, os "sensates" resistem às massas
Das críticas já publicadas pela imprensa internacional parece haver uma pedra-de-toque comum: a história não faz muito sentido. Têm uma certa dificuldade em perceber o argumento e consideram que alguns pontos ficaram por explicar.
Para nós, essa “insuficiência”, esse “deixar por dizer” explica o sentido da série. No mundo pós-moderno a realidade fraturou-se. As grandes narrativas extinguem-se e múltiplas vozes falam da sua realidade a esmo. Com o advento da globalização, foi-nos imposto um intenso e caótico tráfego de pessoas, informações e culturas, forçando os indivíduos a procurar, nesse caldo fragmentado do real, as referências para formação das suas identidades. As distâncias físicas e temporais foram reduzidas e obrigaram a uma massificação e a uma homogeneização das diversidades culturais.
As massas, por seu turno, recusam a racionalidade, a intelectualidade refugiando-se no sem-sentido, no misticismo e no espetáculo. Falámos aqui de como os sensates são um decalque das teorias para-psicológicas das crianças índigo/cristal e como a série se enquadra nos parâmetros da New Age.
A série encaixa nos géneros fantasia e sci-fi que têm invadido os ecrãs. Há um apetite das massas pelos temas de misticismo, fantasistas e/ou escapistas; observável no número de produções que têm vindo a surgir e na grande quantidade de espetadores que as seguem. O sociólogo-filósofo Jean Baudrillard escreveu:
“Seja qual for seu conteúdo, político, pedagógico, cultural, o seu propósito é sempre filtrar um sentido, manter as massas sob o sentido. O imperativo de produção de sentido que se traduz pelo imperativo incessantemente renovado de moralização da informação: melhor informar, melhor socializar, elevar o nível cultural das massas, etc. Disparates: as massas resistem escandalosamente a esse imperativo da comunicação racional. O que se lhes dá é sentido e elas querem espetáculo. Nenhuma força pode convertê-las à seriedade dos conteúdos, nem mesmo à seriedade do código. O que se lhes dá são mensagens, elas querem apenas signos, elas idolatram o jogo de signos e de estereótipos, idolatram todos os conteúdos desde que eles se transformem numa sequência espetacular. O que elas rejeitam é a “dialética” do sentido. E de nada adianta alegar que elas são mistificadas. Hipótese sempre hipócrita que permite salvaguardar o conforto intelectual dos produtores de sentido: as massas aspirariam espontaneamente às luzes naturais da razão. Isso para conjurar o inverso, ou seja, que é em plena “liberdade” que as massas opõem ao ultimato do sentido a sua recusa e sua vontade de espetáculo. Temem essa transparência e essa vontade política como temem a morte. Elas “farejam” o terror simplificador que está por detrás da hegemonia ideal do sentido e reagem à sua maneira, reduzindo todos os discursos articulados a uma única dimensão irracional e sem fundamento, onde os signos perdem seu sentido e se consomem na fascinação: o espetacular.”*
Esta questão do sentido, da destrinça entre realidade e simulacro é cara aos irmãos Wachowski. O autor foi, inclusive uma fonte de inspiração para a trilogia Matrix. Há mesmo um piscar de olho ao espetador quando o personagem Neo (Keanu Reeves), guarda seus programas de paraísos
artificiais no fundo falso da obra Simulacros e Simulação do filósofo francês. Mas se há uma preocupação com o tema, não há contudo uma reflexão sobre o mesmo. O próprio Baudrillard, que não tinha gostado da trilogia, apontava para a falta de compreensão do verdadeiro sentido da sua obra. Em parte talvez se deva ao recurso do espetacular que acaba por negar o sentido.
Em "Sense8", as perseguições, as lutas de artes marciais, as cenas de sexo e toda uma parafernália hollywoodesca maquilham o relevante. E entraram num contrassenso: estes artifícios apelaram às massas que não estavam preparadas para o conteúdo, para o imperativo racional. O que levou muitos, críticos e comentadores nas redes sociais, a falarem da falta de sentido da série, da dificuldade em perceberem o argumento, da lentidão do desenvolvimento da ação.
Paradoxalmente, se as massas resistem ao sentido, "Sense8" resiste às massas e o futuro da série pode ser comprometido.
* BAUDRILLARD, Jean, A L’ombre des Majorités Silencieuses, 1978 [tradução minha].
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