Morreu Norman Lear, umas das maiores personalidades da história da TV norte-americana.
Segundo um porta-voz, morreu na sua casa na segunda-feira de causas naturais aos 101 anos.
Enquanto co-criador ou adaptando formatos britânicos, realizador, produtor, supervisor e argumentista, Norman Lear está indiscutivelmente ligado à libertação do conservadorismo da TV americana graças a uma mão cheia de séries de comédia (as "sitcoms") na década de 1970.
O maior marco dessa inovação é "Uma Família às Direitas", entre 1971 e 1979, sobre as peripécias vividas por uma família da classe trabalhadora norte-americana, liderada pelo "adorável antipático", conservador, intolerante e racista Archie Bunker, num papel inesquecível de Carroll O'Connor.
Essa e as séries "Maude" (1972-78), "The Jeffersons" (1975-1985) e "Good Times" (1974-1979, "spin-off" de "Maude") foram pioneiras na abordagem de temas sociais e progressistas que eram naquela altura praticamente tabu: racismo, feminismo, aborto, violação, homossexualidade, cancro, consumismo, intolerância religiosa e até menopausa e impotência sexual.
Norman Lear esteve também ligado a "Sanford and Son" (1972-1977) e "One Day at a Time" (1975-1984) e sem o mesmo sucesso, mas atualmente considerada de culto, "Mary Hartman, Mary Hartman" (1976-1977).
Embora as séries a que esteve ligado após meados dos anos 1980 não tenham obtido o mesmo impacto, foi muito elogiada a reinvenção para a Netflix e depois para a Pop TV da série "One Day at a Time" (2017-2020), vendo pelo ponto de vista de uma família latina temas como racismo, imigração, doenças mentais, sexismo, homofobia e identidade de género.
Ativo na indústria e nas redes sociais quando se aproximava do seu centenário, ganhou dois Emmys em 2019 e 2020 por programas especiais em direto que recriaram episódios de "Uma Família às Direitas", "The Jeffersons" e "Good Times" com novos atores.
Norman Lear, o rei da 'sitcom' que mudou a TV - e a América
Norman Lear foi o génio prolífico da televisão, cujas comédias pioneiras nas décadas de 1970 e 1980 não só revolucionaram o entretenimento dos EUA como ajudaram a mudar a forma como uma nação se via a si mesma.
Com programas inovadores como "Uma Família às Direitas" e "The Jeffersons", Lear ajudou milhões de telespectadores a confrontar os seus medos, fragilidades e preconceitos mais profundos, bem como as suas aspirações, com humor e humanidade.
Entre os seus marcos estava a criação da primeira família central afro-americana que aparecia regularmente na televisão: o clã Evans em “Good Times”, começando em 1974.
Ele injetou temas delicados de raça, sexualidade, classe, desigualdade e política, como o movimento anti-guerra, no seu trabalho, quebrando o molde da 'sitcom' e transmitindo visões modernas da vida familiar a milhões de lares nos EUA.
Lear abandonou a representação idealista das famílias americanas vista em programas como "Leave It to Beaver" (1957-1963) e, em vez disso, adotou uma representação mais fiel do mundo real - e, ao fazê-lo, mudou o rosto da televisão.
“A novidade é que estávamos envolvidos na realidade”, disse o famoso criador no documentário de 2016 “Norman Lear: Just Another Version of You”.
Ao politizar o pessoal e personalizar o político, Lear tornou-se um gigante do entretenimento.
Mel Brooks, colega ícone da comédia, saudou Lear como "o mais corajoso argumentista, diretor e produtor de televisão de todos os tempos".
Em meados da década de 1970, no auge da sua carreira de oito décadas, Lear tinha cinco comédias populares no horário nobre – uma era anterior à TV por cabo ou streaming, quando os norte-americanos consumiam coletivamente programas em tempo real apenas em três canais nacionais.
A estação CBS estimou que, na época, uns impressionantes 120 milhões de americanos assistiam aos programas de Lear todas as semanas.
O seis vezes vencedor do prémio Emmy escreveu, produziu, criou ou desenvolveu cerca de 100 especiais e programas, incluindo o mega-sucesso dos anos 1980 "The Facts of Life" e a série "One Day at a Time".
A sua comédia revolucionária também lhe rendeu um lugar na lista dos chamados inimigos do então presidente dos EUA Richard Nixon.
Adoravelmente antipático
A criação mais explosiva de Lear foi “All In the Family” ("Uma Família às Direitas"), uma comédia operária tão audaciosa que o seu primeiro episódio, no início de 1971, veio com um aviso de isenção de responsabilidade.
O programa de meia hora apresentou o abrasivo patriarca Archie Bunker, adorável e irascível, mas preconceituoso, tacanho e em conflito implacável com os seus parentes liberais, incluindo o genro Michael Stivic, a quem depreciativamente chamava "Meathead", interpretado por Rob Reiner.
Isto marcou uma mudança de paradigma na TV.
“A televisão pode ser dividida em duas partes, AN e DN: Antes do Norman e Depois do Norman”, disse o argumentista e produtor Phil Rosenthal no documentário de 2016.
Lear, usando o seu chapéu que se tornou uma imagem de marca, também produziu ou financiou clássicos do cinema como “A Princesa Prometida" (1987) e “This is Spinal Tap” (1984), ambos realizados por Reiner.
"Amei o Norman Lear com todo o meu coração. Era o meu segundo pai", partilhou o realizador e ator hoje nas redes sociais.
Mas a televisão era o seu meio mágico.
Nunca muito longe da superfície, nos programas de Lear, estavam as questões que atormentavam a sociedade americana: misoginia, racismo, homofobia, direitos das mulheres e divisão política.
Ele mergulhou profundamente nas complexidades da vidas dos negros norte-americanos. E enquanto "Good Times" pretendia ser uma janela do público branco para a América negra, "The Jeffersons" representava o sonho americano para os negros.
Ao longo de 253 episódios de 1975 a 1985, "The Jeffersons" retratou o sucesso afro-americano através de um casal assumidamente negro "progredindo" na sociedade de Nova Iorque.
"Inimigo" da família?
Norman Milton Lear nasceu a 27 de julho de 1922 no seio de uma família judia em New Haven, Connecticut.
A sua mãe emigrou da Rússia quando era criança, e o seu pai era um vendedor ambulante que cumpriu pena de prisão e tinha uma tendência preconceituosa que envergonhou o seu filho - mas também serviu como fonte de material.
“Uma parte dele era Archie Bunker, uma parte dele era o pai”, disse Lear à Television Academy Foundation.
Frequentou o Emerson College em Boston, mas desistiu depois de um ano para se alistar no Exército dos EUA, realizando 37 missões de bombardeamento na Segunda Guerra Mundial como operador de rádio e artilheiro.
Em 1949, Lear mudou-se para Los Angeles, onde obteve sucesso na televisão a escrever para programas de variedades.
Ele também produziu filmes como "Mulheres é Comigo", de 1963, protagonizado por Frank Sinatra, e em 1967 recebeu uma nomeação para os Óscares pelo argumento original de "Como se divorciam os americanos" (1967), que juntava Dick Van Dyke e Debbie Reynolds.
Com "Uma Família às Direitas" e os programas de TV que se seguiram, a influência de Lear disparou.
O mesmo aconteceu com a sua preocupação com a mistura de política e religião.
Choveram críticas dos circuitos conservadores: além de estar na lista de inimigos de Nixon, Lear disse que o televangelista Jerry Falwell "chamou-me de inimigo número um da família americana".
Lear resistiu ao crescente movimento político de direita religiosa e em 1981 fundou o grupo People For the American Way para promover o pluralismo, o envolvimento cívico e a liberdade de expressão e religião.
A ética de trabalho de Lear era lendária. Muito para lá do seu centésimo aniversário, ele colaborou com o apresentador de TV Jimmy Kimmel nos vários "Live in Front of a Studio Audience!" especiais em que elencos repletos de estrelas realizaram novas versões das suas séries clássicas.
Pioneiro em várias frentes, o representação de Lear dos traumas reais selou a sua reputação.
Num momento decisivo num episódio de "Maude" de 1972, a personagem-título agoniza com a interrupção da gravidez, um enredo que levou a luta pelo aborto ao horário nobre um ano antes da decisão histórica Roe v Wade do Supremo Tribunal dos EUA.
Meio século depois, Lear - que se casou três vezes e teve seis filhos - disse ao "E! Insider" que as questões abordadas pelas suas comédias tinham a mesma ressonância hoje.
“A cultura mudou e mudou... mas a forma como as famílias experimentam a vida é praticamente a mesma”, dizia.
Comentários