Durante 15 anos, Valter Hugo Mãe guardou histórias da infância e juventude para, mais tarde, reuni-las num livro autobiográfico. A pandemia adiantou os planos. Contra mim é fruto do confinamento quando, finalmente, o escritor voltou a ter tempo. “E foi-me inevitável fazer do tempo uma busca por mim mesmo”. Assim surge o primeiro livro autobiográfico do autor. Um livro que é “uma criança às páginas”, “um escritor em menino”.
Porque é que decidiste reunir, agora, estes textos no livro Contra mim?
Mais de metade do livro foi escrito durante o confinamento. Foi uma forma de meditar neste tempo. Um terço do livro já existia em textos, em notas, em algumas crónicas, num ou noutro que terei lido em alguns eventos.
A minha infância marca-me muito. É um traço da minha personalidade este regresso à infância. Mesmo na minha ficção, as crianças são muito importantes, tenho vários livros meus que são narrados por crianças ou que giram em torno da questão infantil. Achei que devia ir guardando estes textos para um dia, quando fosse bem velhinho, pudesse dirigir-me à questão autobiográfica. A pandemia antecipou um bocadinho esta vontade. Subitamente, vi-me incapaz de pensar sobre coisas desligadas de mim. Achei fundamental produzir uma meditação acerca de quem sou. O melhor modo seria usar a infância como lugar das primeiras essências, o estabelecimento das primeiras verdades que, eventualmente, serão as únicas ou as maiores verdades. O livro é resultado disso. É resultado desta pandemia e do favorecimento de estarmos fechados em casa e de termos precisado reencontrar um certo sentido da vida.
De certo modo, a pandemia foi o que precisavas para olhares para ti e não para as personagens e as histórias que foste criando ao longo destes anos.
Sim, eu precisava muito de ficar em casa. Era algo que me vinha apercebendo que a pressão e o stress que estava a criar o meu modo de vida me vinham esgotando, levantando um desafio cada vez mais violento. A pandemia, por mais assustadora, teve este efeito, sabendo eu que sou um privilegiado porque posso trabalhar em casa e trabalho em casa desde há muitos anos. A pandemia trouxe-me essa benesse de parar, de me devolver o tempo. Permitir que fizesse dele aquilo que eu bem entendesse. E foi-me inevitável fazer do tempo uma busca por mim mesmo. De algum modo, este livro passa por aí, é uma tentativa de me reencontrar, meio perdido que estava pelas pressas da vida anterior.
Não quero voltar à normalidade que existia antes. A normalidade era um problema por isso prefiro investir noutra estratégia
Eu sempre disse que acho que a pandemia não vai mudar o mundo, não considero mudança o termo de usar uma máscara, isso não muda nada, é simplesmente um acessório exterior que não altera em nada o paradigma humano. Mas não mudando o mundo, é a minha intenção que me mude a mim. Não quero voltar à normalidade que existia antes. A normalidade era um problema por isso prefiro investir noutra estratégia.
E que estratégia seria esta? Que hábitos e situações estavam a fazer-te confusão?
Afinar as minhas forças com os objetivos essenciais de escrever, escrever sempre, escrever mais. Por isso, eventualmente, deslocar menos, viajar menos. Atentar naquilo que foi sempre a grande folia da minha vida que é, exatamente, a palavra. Viajar é ótimo, apresentar livros é ótimo, mas eu quando era miúdo não sonhei ser apresentador de livros, sonhei ser escritor. E há uma diferença enorme entre mantermos essa fidelidade em relação à escrita e entre deixarmo-nos sucumbir pelas solicitações externas. Não significa que eu tenha deixado de gostar de estar com as pessoas e de estar com os leitores, mas significa que preciso de dosear um pouco mais as coisas.
Nas crónicas iniciais do livro, em que abordas as primeiras memórias da tua infância, é possível perceber que desde miúdo gostavas muito das palavras, apesar de que na tua casa não havia livros. Buscavas algo que ainda não sabias muito bem o que era?
Quando comecei a escrever não sabia o que era um poema, não tinha sequer noção de que existiam livros para guardar aquilo que as pessoas podiam, simplesmente, imaginar. Achava que os livros eram todos sobre assuntos práticos e pragmáticos, eram todos guias elementares para o conhecimento. O que me aconteceu foi mais no foro intuitivo, era mais uma fixação intuitiva pelo modo de dizer, por aquilo que se escuta. Mais tarde é que soube que havia mais gente como eu, foi uma descoberta semelhante às pessoas que só mais tarde percebem que não estão sozinhas no mundo. Eu tive essa epifania, de perceber que outras pessoas padeciam da mesma doença das palavras.
Quando é que se deu este momento?
A perceção de estar acompanhado aconteceu quando comprei o meu primeiro livro. Até então, eu não tinha livros e nunca me tinha passado pela mão um livro daquele género. Quando compro este livro do Alfred Hitchcock [O Segredo do Castelo do Terror], lembro-me de me sentar na beira de uma porta e de, imediatamente, abrir e ler. Estava cansado de vir a correr porque a papelaria estava quase a fechar. No regresso, sentei-me na soleira de uma porta e lembro-me de começar a chorar por abrir o livro e perceber que aquilo era o que eu fazia, mas não sabia, não teria a perceção de que alguém também fizesse aquilo, que usasse as palavras para contar histórias assim como se estivesse à deriva com o pensamento, à deriva na imaginação. Nesse instante, não tive a perceção de que queria ser um escritor, mas tive a sensação de estar acompanhado, de que aquele senhor Alfred Hitchcock, que eu não conhecia de lado nenhum, era como eu, que teria a mesma maleita que tinha eu. A partir daí, comecei a ler, a perceber onde encontrar livros, as coleções, como eram os livros feitos para jovens da minha idade.
Eu tive essa epifania, de perceber que outras pessoas padeciam da mesma doença das palavras
Essas memórias que guardas da infância são muito visuais, de sensações, dos momentos que viveste, da tua relação com a morte e com a religião. O facto teres sido uma criança muito observadora e tímida deu-te esta capacidade de guardar essas imagens tão fortes?
Tenho uma tendência plástica. Há uma plasticidade no meu imaginário que vem desde menino e que fazia com que eu em criança desenhasse muito. Fazia muitos bonecos, imaginava muitas coisas através do desenho e era excelente aluno em desenho, ao ponto de muita gente achar que eu haveria de crescer para ser um pintor e isso foi-me dito muitos vezes. Era mais fácil que eu mostrasse um desenho, uma coisa muito mais ostentada e da qual não tinha muita vergonha, enquanto que os poemas via como algo tão pessoal que não mostraria e, por isso, reservava numa atmosfera muito mais íntima de que ninguém sabia.
Até hoje, continuo com uma cabeça plástica, tenho um pensamento muito visual. Isso também tem a ver com o facto de, na altura, sendo o filho mais novo era muito guardado e protegido. A vida chegava-me cheia de filtros, dentro de casa e no que respeita à família, havia muitos filtros dentro de cada assunto. O que fazia com que eu, normalmente, não recebesse qualquer explicação, apenas assistia a uma espécie de coreografia, de expressão plástica da família. Os corpos movendo-se na casa, o ânimo das pessoas, mais do que uma expressão sincera e formulada. Sendo o mais novo ninguém me explicava nada, ninguém debatia comigo um problema à procura de uma solução.
“Foi sempre um perigo pensar na felicidade”, escreves numa das crónicas. Porque é que escreves isso? Achas que não foste uma criança feliz ou que te debatias com a possibilidade de ser feliz?
O perigo de pensar na felicidade tem exatamente que ver com o não estarmos apaziguados com o que somos e com a realidade. A felicidade é uma questão que se coloca às pessoas que não estão bem, as pessoas que estiverem apaziguadas podem não assumir a felicidade, mas, à partida, não sentem necessidade dela. De todas as vezes que, angustiado ou assustado, pensava que caminho poderá haver para a felicidade, esta pergunta era uma forma de piorar. Era mais ajuizado deixar de a fazer.
“Crescia para procurar um sentido”. Lá está, ainda estavas à procura de algo que não sabias muito bem o que era.
Sem dúvida e até hoje. A própria escrita deste livro é muito a tentativa de regressar às premissas iniciais para ver se consigo repor a busca do grande sentido da vida. Foi a tentativa de pensar: vamos voltar a fazer as perguntas fundamentais. O que é que eu quero? Quem é que eu sou? O que é que me define? Em que é que eu acredito? Por isso, estando há 36 anos de distância de mim, o livro não é exatamente uma espécie de louvor e jamais uma saudade do passado, ele é um instrumento para o meu futuro.
A própria escrita deste livro é muito a tentativa de regressar às premissas iniciais para ver se consigo repor a busca do grande sentido da vida
Regressando àquele tempo, podes encontrar respostas e novas perguntas para o teu futuro.
Eu digo isso na nota de autor, não sou mais aquela criança boa, mas quero, ao menos, ter memória daquela criança boa. Quero, ao menos, saber que um dia tive aqueles princípios e tive o desejo de salvar o mundo. Isso, talvez, signifique que hoje, aos 49 anos, eu precise estar mais perto de alguém que acredita que podemos melhorar o mundo do que render-me às agruras e desistir de tudo.
Quando começamos a ler o livro, temos um retrato do norte de Portugal logo a seguir ao final da ditadura com todas as questões da altura, a própria questão da tua família ter regressado de Angola e todos os preconceitos que acabaste por sentir, ou parte da tua família que vivia em França. Portanto, há uma série de traços com os quais muitas pessoas se podem identificar. Consideras que vais ter algum retorno dos teus leitores no sentido da identificação?
Há várias pessoas que já leram e já me têm feito chegar mensagens sobre as suas leituras. Há pessoas que ficam perplexas, é curioso que quem cresceu em Lisboa, da minha geração, tem uma experiência completamente diferente das escolas. Custa-lhes a crer que eu, em Paços de Ferreira, tivesse ainda uma escola tão severa, com professores que nos batiam, que nos faziam sangrar, que partiam braços. Lembro-me de ter sido levado para a turma daquela professora por ela ser considerada a mais boazinha da escola, a mais boazinha que nos batia todos os dias e nos fazia sangrar.
O que eu sinto ali em 1976, 1978 ainda é a atmosfera da ditadura
O livro faz este exercício de falar do passado recente de Portugal sobre temas que são pouco abordados ou que muitas pessoas não gostam de falar.
Sim, têm vergonha, porque ao discutirem estas questões precisam de expor a sua própria condição e muita gente ainda não quer. As pessoas que regressaram de África não querem discutir o retorno. São muito poucos os testemunhos diretos da minha geração acerca do retorno. Há um tabu.
A dada altura, escreves que “todas as crianças em 1970 queriam ser super-heróis”. As crianças de hoje em dia, se calhar, não querem ser super-heróis, querem ser influencers…
É muito mais interessante voar e ter visão de raio-x do que falar no Youtube. Nós éramos mais excêntricos, mas parece-me muito mais fantástico crescer a querer voar como os pássaros do que crescer a querer falar no Youtube como a Pipoca mais doce. A grande diferença é que nós crescíamos à solta. As crianças eram largadas na rua. Quando a minha mãe saía, fechava a porta à chave e quem estivesse na rua, ficava na rua. Não ficávamos em casa porque se estivéssemos em casa sozinhos podíamos fazer asneiras. Ficávamos trancados na rua e só podíamos entrar quando ela voltasse, mas nós não sabíamos quando e nem tínhamos relógio. A dada altura da tarde, teríamos fome, queríamos lanchar e a minha mãe regressava. Quando me começasse a doer muito barriga, eu estaria na soleira da porta à espera da minha mãe, fosse meia hora, fosse hora e meia. A rua não apresentava perigo. Se, de facto, não fizéssemos asneiras, a rua não apresentava perigo, não éramos raptados, roubados, a expectativa disso acontecer era praticamente nula. Essa liberdade é uma fortuna que as crianças já não conseguem ter. Qual criança hoje com seis anos fica trancada na rua com normalidade?
Parece-me muito mais fantástico crescer a querer voar como os pássaros do que crescer a querer falar no Youtube como a Pipoca mais doce
A nossa infância era física. Hoje a infância é virtual. As pessoas podem ficar a ver mil vídeos sobre passarinhos a voar, sobre como subir numa árvore, como nadar num riacho ou o que fazer com a picada de uma abelha, mas é completamente diferente de, efetivamente, subir à árvore, ver os pássaros a voar ou nadar no riacho. A nossa infância era a infância da experiência e o que está a acontecer agora é que os miúdos têm a infância da informação.
Falando, então, sobre os nossos tempos atuais. Como é que esta pandemia vai moldar as pessoas daqui para a frente?
Acho que não vai trazer benefício nenhum, muito pelo contrário, vai ser pretexto para todos os apertos, para todas as tiranias, desde logo tiranias políticas e económicas, que já estamos a sentir. Vamos ser capturados por estes discursos de que alguém precisa de pagar por o que está a acontecer e, não tenho dúvidas, de que quem vai pagar vão ser os que não conseguem fugir, vai ser a larga massa popular. Por outro lado, isto também vai deixar um trauma nas crianças e jovens que se veem confinados e disciplinados. Não me admira que muitos desenvolvam crises de ansiedade muito mais cedo, desenvolvam frustrações e que, de facto, possam transformar esta geração na geração da informação, mais do que numa geração de experiência.
Qual a rotina que sentes mais falta do tempo pré-pandemia?
Há uma coisa que, violentamente, parou na minha vida, foi o facto de ter interrompido as minhas idas ao café. Quando estava em Vila do Conde, em casa, a minha rotina era sair à noite para o café onde ficava horas a conversar com os meus amigos. E agora não me sinto seguro. É um lugar de risco, um lugar de pessoas que aceitam correr riscos. Por mim, talvez, aceitasse, se estivesse sozinho, mas como estou a cuidar da minha mãe e ela tem 80 anos não me passa pela cabeça vulnerabilizar-me daquela maneira. Então, é o que eu tenho mais saudades de recuperar, as minhas tertúlias no café, onde ficava a fazer desenhos, a debater sobre política e a debatermos sobre a vida íntima de cada um até sabermos tudo acerca uns dos outros.
Para terminar, já tens história para um novo livro? Ainda ficaram memórias da tua infância/juventude por contar, quem sabe, para um próximo livro autobiográfico?
Tenho vindo a escrever, nos últimos anos, um romance passado na Amazónia que, teoricamente, seria lançado este ano, mas com a pandemia decidi que não, prefiro acabá-lo com calma e lançá-lo quando puder viajar ao Brasil também. Eu quero muito poder encontrar os meus leitores brasileiros quando o livro sair. E, por isso, interrompi para a escrita do Contra mim e para ponderar acerca deste tempo estranho que estamos a atravessar. Mas estou agora à volta dele, outra vez, e conto que, talvez, saia no fim do próximo ano.
Por outro lado, a memória é algo que se exercita e que quanto mais se exercitar mais nos pode oferecer. A escrita deste livro levantou pistas para muitas outras coisas, tantos pequenos episódios, tantos dias, que eu talvez nunca mais lembrasse se não fosse o decidir escrever. Não sei se voltarei a escrever algo mais autobiográfico. Talvez, no máximo, no futuro, possa haver uma nova edição do Contra mim que seja aumentada, até corrigida, porque há determinadas coisas que, à luz de outras conversas, possam ser revistas. Mas não creio que escreva um segundo volume, não me será necessário porque, na verdade, o que procuro com o Contra mim não é tanto a exposição factual do que foi a minha vida, é a mais a memória da construção de uma certa sensibilidade. É isso que me importa e é isso que posso aproveitar para o futuro. Como determinados acontecimentos na minha vida levaram ao aparecimento de um determinado tipo de sensibilidade e da importância que passei a dar à escrita e à leitura. Isso é o que me servirá para o futuro e isso é o que interessa, acima de tudo, deste livro.
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