A peça do dramaturgo britânico Duncan Macmillan é, nas palavras do ator, “um falso monólogo”, que já foi visto naquele espaço por mais de 15.000 espectadores, e que já tem sessões esgotadas em Lisboa, onde vai permanecer em cena até dia 29, antes de se apresentar no Convento de S. Francisco, em Coimbra, nos dias 04 e 05 de fevereiro.
Baseada em factos verídicos, a trama de “Todas as coisas maravilhosas” centra-se numa criança de 7 anos que vai anotando uma lista com todas as coisas lindas da vida, na tentativa de ajudar a mãe a ultrapassar uma depressão.
“Uma viagem arquétipo onde estão os momentos com que todos nos identificamos: a primeira escola, a primeira namorada ou namorado, a primeira vez que saímos de casa”, exemplificou o ator à Lusa.
Para Ivo Canelas, não se trata de uma peça “triste” ainda que aborde problemas de saúde mental, como a depressão e o suicídio, e alerte para a importância de “uma consciência social mais forte para estes problemas”.
Na sala montada em arena, Ivo Canelas apresenta-se no centro, movendo-se e, pontualmente, encetando uma espécie de diálogo com uma pequena parte do público, convidando-o a “pequenas intervenções muito simples”, o que faz de “Todas as coisas maravilhosas” um espetáculo “diferente todos os dias”.
Trata-se de um “hino à vida, tal como o autor concebeu o texto”, sublinhou o ator, que também adaptou a peça para os palcos portugueses, com a escritora Margarida Vale de Gato.
“Há uma série de momentos emblemáticos nas nossas vidas que nos põem a todos, mais ou menos, no mesmo barco; e isso ajuda-nos muito a perceber o quão isto [a vida] é difícil para todos”, frisou.
Por isso, a empatia que o texto cria “também nos ajuda a reposicionarmo-nos no mundo que nos rodeia”, observou.
O facto de o texto do dramaturgo nascido em 1980, no Reino Unido, “não se colocar em nenhum sítio de moralidade superior” é o que mais cativa Ivo Canelas.
"É um hino à fragilidade que é a vida e quão passageira ela é”, sem apresentar “nenhuma resposta simples”, acrescentou, sublinhando que a peça propõe uma “tentativa” de “viver um dia de cada vez” e de “[se ser] feliz”, frisou.
Apesar da “aparente simplicidade”, o texto tem uma “enorme complexidade e profundidade”, abordando um tema que é “transversal a toda a sociedade, a depressão em geral”, observou.
Quando Hugo Nóbrega o desafiou a trabalhar o texto, Ivo Canelas nunca pensou como iria “ficar positivamente surpreendido” ao encontrar um público “muito destemido para ver, ouvir, falar e pensar alto sobre depressão, suicídio, doenças mentais”.
Admitindo que a peça lhe permite “exorcizar fantasmas”, o ator espera que também proporcione ao público a possibilidade de se questionar e expressar sobre “coisas que [sente], [pensa] e nem todas são positivas, nem tão claras”.
Ivo Canelas mostrou-se também “muito entusiasmado” por o uso de máscara já não ser obrigatório.
“Se, por um lado, protegeu todos e permitiu realizar espetáculos, por outro, também afastou pessoas”, argumentou, admitindo que na peça em questão o uso de máscara poderá ter “facilitado o contacto com a emoção”, já que o público tinha parte da cara tapada.
Por isso, está ansioso para ver os rostos “completamente descobertos”, o que lhe dá “um enorme prazer” e o deixa expectante.
Questionado sobre o que o levou a pôr o espetáculo em cena, Ivo Canelas invocou ter gostado do texto, ter-se "identificado em parte com ele", além de abordar problemas de saúde mental, que estão "cada vez mais atuais".
A consciência da pertinência do texto foi surgindo conforme o foi representando, os espetáculos se iam esgotando e se apercebeu de espectadores que voltaram várias vezes.
“A reação das pessoas foi sempre tão intensa, emotiva e profunda que só aí nos apercebemos do impacto que estávamos a ter e que ia muito além das nossas expectativas”, disse.
Sem explicações para a reação do público à peça que lhe valeu o Prémio Espetáculo Solo pelo Guia dos Teatros 2020, Ivo Canelas atribui-as ao “material que está muito bem escrito”.
Por isso, confessa-se um “privilegiado” por poder interpretar uma obra escrita “de uma forma absolutamente envolvente” e de, enquanto ator, poder “levantar do chão” aquela personagem, criando momentos “em que [se suspende] a descrença e [se acredita] naquela realidade”.
“Sermos felizes seria o ideal”, enfatizou.
"Mais do que uma peça otimista, porque o otimismo implica quase uma decisão, 'Todas as coisas maravilhosas' é um texto que aponta para essa possibilidade complexa, e se calhar um bocadinho mais ainda do que gostaria, que reside na possibilidade de vermos as coisas maravilhosas que existem à nossa volta”, observou.
“E enquanto tivermos a capacidade de constatar isso, de conseguir observar isso de uma forma inata, somos uns privilegiados”, porque se essa possibilidade foge, “desaparece um dos grandes trunfos como seres humanos de conseguir ser feliz”, concluiu.
Estreado com sucesso no Fringe Festival, em Edimburgo, e levado à cena em diversos países, o texto de Duncan Macmillan “Every brilliant thing” (no título original) deslumbrou ainda Ivo Canelas por nele o dramaturgo conseguir “atingir e tocar em tantas cores da humanidade e todas as suas complexidades”.
Só depois se apercebeu de que o material da escrita “resultou de um 'workshop' com dezenas de pessoas”, o que contribuiu para “entender melhor a humanidade de tudo o que está na escrita”.
Sem projetos “de concreto para a frente”, após as representações em Lisboa e Coimbra, porque na profissão de ator aprendeu que “há que ter sempre a flexibilidade para ver onde ela [o] leva”, admitiu, porém, que gostariam de levar a peça numa pequena digressão pelo país, até abril.
“E depois logo se vê”, disse, não descartando a hipótese de regressar aos palcos de Lisboa, consoante a procura pelo público.
Entre as sessões já esgotadas conta-se a primeira, cuja receita reverte a favor da Associação SOS Voz Amiga, uma linha de apoio emocional disponível para ajudar quem se encontra em sofrimento causado pela solidão, ansiedade, depressão ou risco de suicídio.
A receita do dia seguinte reverterá para a Mansarda, uma instituição particular de solidariedade social, de caráter cultural e cívico, de apoio a artistas.
Com assistência de encenação e direção de cena de Dora Berardo, a peça “Todas as coisas maravilhosas” tem produção executiva da H2N/Hugo Nóbrega e coprodução da estúdio Time Out/Mariana Vale.
O desenho de luz é de Paulo Sabino e o som de Sebastião Santos e Tomás de Almeida.
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