Para o encenador é exatamente essa noção de modernidade presente em Büchner, em "'non sense', surrealismo, e existencialismo ao nível de escrita", que o levaram a escolher esta "obra-prima do dramaturgo alemão”, como afirmou à agência Lusa.
Da peça “Woyzeck”, Büchner escreveu “quatro versões diferentes” sem que nunca a tenha acabado verdadeiramente, recorda João Mota, o que permite que “cada encenador aproveite os textos da maneira como quer e pela ordem que quer”.
Woyzeck, o protagonista, "é uma personagem de uma atualidade muito grande numa altura em que a despersonalização existe verdadeiramente", frisou João Mota à Lusa.
"Vivemos numa época de discriminação total entre ricos e pobres”, afirmou o encenador. E “ser pobre é terrível, porque são abandonados por todos, até pelos próprios pobres”.
“Woyzeck”, afirma, “tem esse lado de drama e de tragédia”, mas também “um lado cómico humano, de uma crueldade muito grande”.
“Isso é terrível e está a acontecer muito, não só em Portugal como em todo o mundo", prosseguiu o encenador, afirmando que o ser humano "está a voltar aos seus instintos animalescos", "a perder o lado racional, o lado da sensibilidade, digamos assim” - e “quando se perde esse lado, o mundo da razão não chega”.
No caso do protagonista da peça, a perda da razão assume ainda maior importância, por se tratar de um “pobre, um miserável”, vítima de 'bullying' por parte de todos, "porque o atraiçoam, porque é utilizado só como marioneta praticamente. É terrível”, disse João Mota.
“Woyzeck”, a peça, é baseada na história verídica do soldado Franz Woyzeck, homem que cometeu um crime, num ataque de ciúmes, e acabou executado em praça pública.
"O Homem ficou sempre a perder com aquilo que chamamos “evolução”, diz João Mota. “Uma sociedade só evolui quando o Homem passa a ser exemplo de si próprio para os outros. Enquanto essa sociedade não existir, estamos sempre a utilizar sistemas”.
Ao considerar que “as civilizações duram sempre aproximadamente dois mil e tantos anos, tanto a grega, como a egípcia, como a dos maias e a judaico-cristã”, o encenador e diretor da companhia que em 2022 completou 50 anos, considerou que a humanidade está a “viver num caos”.
Mas espera que, “depois de um caos haja luz”.
A Humanidade está a viver numa fase em que “esse lado negativo”, “esses instintos animalescos estão totalmente cá”.
“Temos de encontrar um lado para equilibrar [com esse pior], e ainda estamos muito longe desse equilíbrio”.
Para João Mota, “quando a sensibilidade não está na própria vida das pessoas, [...] quando não há esse lado", quando falta "o sentido da música, da dança, da poesia, do cinema, do teatro, da leitura, estamos a morrer”.
“Deixámos de ser exemplos, não somos exemplos para ninguém. Vamos vivendo, pronto, e gostamos muito de viver assim”, mas a "mediocridade, a mediocridade totalmente animalesca habita em nós”, assegurou o encenador, sublinhando que a última peça do autor alemão escrita em 1896 “é genial e de uma atualidade enorme”.
“Uma atualidade que causa ao autor, não tanto um 'tremer'", mas que o põe "a meditar e a repensar” onde está a Humanidade e o que queremos para ela, disse João Mota.
A protagonizar "Woyzeck" está Hugo Franco, sendo acompanhado por João Grosso, no de doutor, Almeno Gonçalves, como capitão, e Carlos Paulo, como o Velho, personagem que “tem poucas falas nesta peça”, mas que o encenador criou inspirada noutros textos do escritor do Romantismo alemão, também médico e autor da comédia “Leôncio e Lena”.
O Velho "é uma personagem nova que criei que nos faz ir meditando, dentro do surrealismo e do existencialismo, e que nos vai relembrando do que é fundamental”, concluiu João Mota.
A peça conta também com interpretações de Francisco Pereira de Almeida, Gonçalo Botelho, Luís Garcia, Maria Ana Filipe, Miguel Sermão, Patrícia Fonseca e Rogério Vale
Em cena até 7 de maio, “Woyzeck” tem récitas à quarta e quinta-feira, às 19h00, à sexta-feira e sábado, às 21h00, e, ao domingo, às 16h00.
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