“Melhor Não Contar”, nono livro da escritora brasileira Tatiana Salem Levy e sexto editado em Portugal, não é o primeiro em que autora aborda questões do universo feminino, mas é a primeira vez que o faz de forma tão aberta e explícita, falando a partir de um lugar interior.
O resultado final deste seu trabalho - editado pela Elsinore e lançado no domingo passado no Folio Festival Literário Internacional de Óbidos -, uma obra fragmentada, composta por memórias e reflexões pessoais, intercaladas com excertos dos diários da mãe, cartas e outros documentos, não foi o que Tatiana Salem Levy imaginou à partida.
Tudo começou com o seu desejo de fazer um “pequeno ensaio autobiográfico pensando a escrita das mulheres a partir dos diários”, contou a escritora em entrevista à agência Lusa.
“Aprendemos a escrever para esse ser inanimado que é o querido diário. E escrevemos para não sermos lidas, pelo contrário, precisamos esconder aquilo que escrevemos. E eu acho que isso é muito simbólico do que é, do que tem sido até aqui, o lugar da mulher na sociedade, que é esse lugar do sussurro, do murmúrio, aquilo que tem de se falar por trás das cortinas, para ninguém ouvir”.
O que Tatiana quis foi “subverter essa ideia”, a partir dos diários de adolescência da mãe, que recebeu quando ela era, por sua vez, também uma adolescente a fazer tentativas falhadas de escrever um diário.
Anos mais tarde, numa das suas várias mudanças de casa, Tatiana Salem Levy perdeu estes diários, que ficaram desaparecidos mais de 20 anos.
“Decidi então escrever sobre esses diários em falta, sobre a memória desses diários, até porque sou uma escritora que se interessa muito pela memória, pelos vazios, pelas perdas, pelos fracassos. Só que eu estava escrevendo o livro havia uns quatro meses, quando a minha irmã se mudou de casa e encontrou esses diários”.
“Então eu quis trazer os diários para cá. E a partir disso aí, eu fui pensando muito essa questão do segredo. E aí surgiu essa outra camada, que se tornou uma camada muito importante do livro, que é um segredo que eu guardei da minha mãe nos últimos anos de vida dela, que foi o assédio do meu padrasto que eu sofri”, contou.
Esta é a cena que abre o livro, quando Tatiana, a narradora e personagem, passa da infância para a adolescência, aos 10 anos de idade.
“Aí tem uma cena iniciática, digamos assim. Foi uma cena que me perseguiu muito ao longo da vida, junto com os acontecimentos posteriores relativos ao assédio”.
A cena inicial passa-se na piscina de casa do padrasto, onde este faz um retrato rápido da enteada numa folha de papel: “Uma menina sem rosto – sem olhos, sem nariz, sem boca – com um cabelo levemente encaracolado. Seus mamilos, apontando um para cada extremidade do papel, chamam a atenção. Há mais tinta neles, foram desenhados com força. Estão eretos, reparo”, descreve a narradora.
Este acontecimento – que gerou na autora um mal-estar que não soube nomear – seria o prelúdio de comportamentos de assédio por parte do padrasto mais tarde, já na sua juventude.
“Eu hesitei muito se eu contava ou não contava para a minha mãe, porque ela tinha um cancro, eu sabia que ela ia morrer e que não ia ter tempo de refazer a vida, e eu achava que ia acrescentar mais uma dor àquela mulher que era a pessoa que eu mais amava no mundo e que já estava em sofrimento”.
Ao mesmo tempo, sentia o ímpeto de lhe contar, porque eram íntimas e partilhavam muito das suas vidas.
Essa separação entre elas, esse “muro que se ergueu” no meio da relação mãe e filha, não por algo que uma delas tivesse feito, mas por um terceiro elemento, foi para Tatiana “a grande violência” do assédio do padrasto.
Então, ao pensar a relação dessa escrita das mulheres com um segredo, a escritora sentiu que “esse segredo deveria ser revelado, deveria ser desdobrado”, deveria sair dela “e ser exposto, no sentido de pôr para fora”.
No entanto, rejeita a classificação da obra como “confessional”, porque não está a confiar um segredo a um público, está a escrever sobre ele, o que é “muito diferente” de contar.
Ao longo da vida, contou o sucedido a várias pessoas, desde amigas a namorados, e o que sempre ouviu dessas pessoas foi o conselho “melhor não contar”, frase essa que, paradoxalmente, acabaria por escolher para título do livro em que “conta quase tudo”.
“Eu achei que era um bom título, justamente pela sua ambiguidade”.
Além de composto por fragmentos de memórias, de reflexões, de páginas de diários, de diálogos, de cartas e até de uma ficha clínica e de uma foto da lápide da mãe, a história não segue uma linha cronológica.
“Eu só sei escrever assim. Todos os meus livros são assim, fragmentados, vão e voltam no tempo, porque também todos os meus livros são a expressão dessa obsessão pela memória. Não sou eu que escolho a memória. A memória é como se fosse outro sujeito, que fica aqui voltando, então eu gosto disso na literatura, que é ter um controlo, mas não ter um controlo total”.
Além disso, Tatiana tem uma forma de escrever “completamente desordenada”, em que escreve sobre uma cena, “depois vem outra cena”, entretanto vão entrando coisas que acontecem enquanto está a escrever, e vai fazendo uma montagem, como no cinema, explicou.
Foi assim que escreveu sobre a sua gravidez indesejada, aos 44 anos, e a interrupção voluntária da gravidez que optou por fazer, em Lisboa, onde vive há quase 12 anos.
“Eu não tinha a menor intenção de escrever sobre isso, só que depois aquilo foi-me tomando muito e foi-me tomando quando eu estava escrevendo e aí eu escrevi sobre isso separadamente, porque é tudo separado, assim, mas depois eu vou juntando. Eu escrevi porque eu precisei de escrever”.
Uma das razões dessa vontade foi tratar-se de um tema que, novamente, fala “desse corpo da mulher em transformação” e fala “desse sangue que sai dos seus corpos”.
“No aborto, é um excesso de sangue, assim como no parto, como nos primeiros anos e nos últimos anos de menstruação. E é um sangue que quase não entra na literatura. A gente tem sempre muito pudor de falar desse sangue. E eu falo isso no livro: que o cinema, a literatura estão cheios de sangue, mas são os sangues das mortes, dos assassinatos, das guerras, é um sangue extremamente masculino”.
Escrever este livro não foi fácil – admite -, a escrita não cura as dores do passado, mas pode ser terapêutica, porque “coloca perguntas o tempo todo”, e a dor das memórias “vai para um lugar de alegria”, proporcionando alívio.
Um dos principais desafios que sentiu foi colocar-se “determinadas perguntas” para perceber o quanto estava implicada no que aconteceu, tentar não ser complacente” consigo mesma, “fazer essas perguntas que são perturbadoras”, fazer a denúncia, mas ir um pouco além do maniqueísmo, afirmou.
“Um dos pontos da crueldade, de violências, abusos com meninas é o facto de que, em algum lugar, de alguma forma, elas se implicam”, acrescentou.
A escritora espera que a sua exposição possa “contribuir para o debate sobre esse tipo de temas que ainda são tabu, apesar da abertura cada vez maior”.
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