Aterrorizada pela sua segurança, a atriz indiana Sreelekha Mitra lembra-se de empurrar cadeiras e um sofá contra a porta do hotel depois de revelar que foi assediada sexualmente por um premiado realizador veterano.
Mitra esperou 15 anos para falar sobre o incidente, um dos vários casos que expõem o ponto fraco da indústria cinematográfica indiana de língua malaiala "Mollywood", que ganhou prémios em Cannes.
A sua revelação foi estimulada por um explosivo relatório governamental que documenta o assédio sexual generalizado numa indústria dominada por homens ricos e poderosos que acreditam que uma atriz disposta a beijar no ecrã faria o mesmo na vida real.
“Fiquei acordada durante toda a noite”, disse Mitra, 51 anos, à France-Presse (AFP).
Mitra foi convidada para uma reunião na casa do realizador e diz que ele a atraiu para o seu quarto para um telefonema com um diretor de fotografia.
“Ele começou a brincar com o meu cabelo e pescoço... sabia que se não dissesse nada, a mão dele percorreria outras partes do meu corpo”, diz a atriz, descrevendo acontecimentos de 2009, quando tinha 36 anos.
Ela saiu e voltou para o hotel.
"As intenções por trás dos seus movimentos eram bem claras para mim... fiquei petrificada", recorda.
O seu caso e quase uma dúzia de outros desencadearam um acerto de contas do #MeToo na indústria, com pelo menos 10 figuras proeminentes acusadas, segundo a comunicação social indiana.
Mollywood, com sede em Kerala, é conhecida por filmes aclamados pela crítica com temas fortes e progressistas, uma mudança em relação aos grandes números de dança e música da gigante indiana Bollywood, de língua hindi em Bombaim.
A indústria é prolífica, produzindo até 200 filmes por ano, apreciados não apenas pelos 37 milhões falantes da língua malaiala do sul da Índia, mas também dobrados e exibidos no resto da Índia – e no estrangeiro.
Internacionalmente, os seus filmes ganharam prémios, incluindo a sátira "Marana Simhasanam" ("Trono da Morte", em tradução livre), de 1999, vencedora do prémio Camera d'Or em Cannes.
"Manjummel Boys", deste ano, um 'thriller' de sobrevivência, arrecadou o equivalente a 29 milhões de dólares nas bilheteiras, o filme malaiala de mais receitas de todos os tempos e o quinto de maior sucesso na Índia este ano.
O 'pior mal'
O relatório da indústria, divulgado em 19 de agosto, disse que as atrizes enfrentavam o “pior mal” generalizado do assédio sexual.
O relatório foi divulgado pelo Comité Hema, liderado por um ex-juiz dos tribunais de recurso, criado após uma importante atriz malaiala relatar ter sido abusada sexualmente em 2017.
Gopalakrishnan Padmanabhan, um proeminente ator mais conhecido pelo seu nome artístico Dileep, foi preso por alegadamente orquestrar o ataque. Ficou preso durante três meses antes de ser libertado sob fiança. O caso continua.
Mas a divulgação do relatório abriu o debate sobre a questão muito mais ampla da violência crónica contra as mulheres, encorajando pessoas como Mitra a falar em público pela primeira vez.
O relatório afirmou que as mulheres que consideraram denunciar a agressão sexual foram silenciadas por ameaças à sua vida e às suas famílias.
A premiada atriz Parvathy Thiruvothu, 36 anos, classificou a investigação como um “momento de viragem” e um “momento histórico”.
“Havia a ideia de que as mulheres que trabalhavam na indústria deveriam sentir-se gratas por terem recebido uma oportunidade dos homens que as contratavam”, disse a atriz, que faz parte do grupo ativista Women in Cinema Collective.
A abalar tudo
As alegações de abuso no cinema indiano não são novas.
Houve uma vaga em 2018, logo após o movimento #MeToo de 2017 eclodir em Hollywood contra o produtor de cinema norte-americano caído em dresgraça Harvey Weinstein.
Mas Thiruvothu chamou as últimas alegações de mais do que “#MeToo, Parte Dois”.
“Está a abalar tudo”, disse à AFP.
“Não se trata mais de uma queixa individual. Trata-se de uma estrutura sistémica que continua a falhar com as mulheres”, explicou.
Vários atores importantes foram acusados desde a divulgação do relatório.
A Associação de Artistas do Cinema Malaiala foi dissolvida após a renúncia do seu chefe por "motivos morais", com alguns membros entre os acusados.
Ranjith Balakrishnan, 59 anos, realizador e presidente da academia de cinema do estado, também pediu a demissão.
Balakrishnan, que nega qualquer irregularidade, foi o homem que Mitra acusou de assédio sexual.
A polícia abriu um processo contra ele por ofender a modéstia de uma mulher, um crime sem direita a caução.
Mitra, que até à divulgação do relatório apenas mencionou o incidente a um colega da indústria, disse à AFP que Balakrishnan utilizou indevidamente “o seu poder”.
Thiruvothu ofereceu uma mensagem a todas as mulheres da indústria cinematográfica que sobreviveram a agressões sexuais.
“És uma artista com qualidade... não dês ouvidos a ninguém que te diga para encontrar outro emprego se é tão difícil para ti”, disse.
"Esta é a tua indústria, tanto como é de qualquer outra pessoa. Fala, para que ocupemos o espaço que é nosso por direito.", concluiu.
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