Intitulado “Prima Contradição”, o livro póstumo, editado pela Assírio & Alvim, reúne parte de uma obra poética que nunca recebeu versão definitiva, selecionada entre mais de um milhar de páginas deixadas por Pomar, um modernista multifacetado.
“Esta poesia é muito diferente da outra, quase com ar de quadras populares”, disse à agência Lusa Alexandre Pomar, filho do artista e presidente da fundação criada há vinte anos para guardar e divulgar o legado de Júlio Pomar, que morreu em 2018.
Júlio Pomar publicou ainda em vida dois livros de poemas: “Alguns Eventos” (Dom Quixote, 1992) e “Tratado do Dito e Feito” (Dom Quixote, 2003), que inclui também o texto “Apontar com o Dedo o Centro da Terra”, do escritor e amigo António Lobo Antunes.
“Este é um livro diferente com uma escrita muito direta e acessível, quadras muito baseadas em ditos populares, em frases feitas, em provérbios e expressões populares”, comentou Alexandre Pomar sobre o livro póstumo “Prima Contradição”.
“Não é pior nem melhor/O desinteresse geral/Vamos indo menos mal/E parece que o amor/Não é pecado venal/E neste caso se o for/Não será muito pior/Que Páscoa sem Carnaval”, é um dos versos contidos nos 13 “Cantos” recolhidos no livro.
A seleção de poemas e coordenação da obra coube ao poeta José Alberto Oliveira (1952-2023) e ao filho, José António Oliveira, que, num apontamento sobre a edição, escreve que o trabalho começou assim: "Tentar encontrar um texto tão escorreito quanto possível, e selecionar os poemas que nos pareceram mais conseguidos."
Procuraram também acomodá-los no esquema de treze partes a que Júlio Pomar chamou "Cantos", cada um com treze poemas, que era o seu desígnio, conforme transmitido por Tereza Martha, viúva do artista, “que se empenhou em tornar possível este projeto”, sublinha.
Alexandre Pomar recordou que o pai “ía escrevendo uns apontamentos nuns papéis que a Teresa [Martha] datilografava e, depois, com esse texto, o Júlio [Pomar] voltava a emendar, corrigir e alterar."
“Era um processo muito longo e eventualmente interminável, e que ele deixou por acabar. Não existia uma escolha já feita. Havia para cada um várias versões, por causa deste processo”, relatou.
Os organizadores da obra descrevem também que alguns dos poemas que encontraram neste espólio “foram concebidos como letras de fados, e destes, vários já musicados, muitos aparentemente inacabados, ou constando de variações sobre o mesmo tema, sem indicação de preferência entre variantes.”
Alexandre Pomar acredita que o cariz popular deste conjunto de versos agora publicado “está relacionado com o gosto que [Júlio Pomar] tinha por escrever letras para fados”, disse à Lusa.
“Estas poesias têm um pouco esse caráter. Não são letras para fados, mas vêm nessa sequência”, aponta, recordando que em 2023 foi editado um álbum com dez fados com as letras do poeta-pintor, intitulado “Pomar”, pela editora Museu do Fado Discos.
Esse disco de homenagem conta com a participação, entre outros, dos fadistas Camané, Carminho, Ricardo Ribeiro, Cristina Branco, Aldina Duarte, Ana Sofia Varela e Pedro Caldeira Cabral.
Nascido em Lisboa, em 1926, Júlio Pomar pertenceu à chamada terceira geração de pintores modernistas portugueses, e a sua obra multifacetada, centrada na pintura e no desenho, também reúne cerâmica, gravura, ilustração, tapeçaria, cenografia para teatro, destacando-se como um dos maiores animadores do movimento neo-realista.
O seu percurso artístico também está marcado pela intervenção política - foi preso durante a ditadura de Oliveira Salazar – e criou várias obras públicas, entre elas os frescos do Cinema Batalha, no Porto, na década de 1940, que viriam a ser ocultados por ordem policial.
É justamente na década que 1940 que o pintor “foi escrevendo alguma poesia, esquecida, mas nos anos 1970 dedicou-se muito à escrita, parte publicada em livro, com muita prosa e ensaios sobre pintura”.
As primeiras poesias foram publicadas na década de 1970, em colaborações para a revista de Alberto Lacerda “MAIO - International Poetry Magazine, Number One” (1973) e para a revista “NOVA 1” (1975) de Herberto Helder.
“A poesia tornou-se importante nas últimas décadas da vida”, apontou Alexandre Pomar, sobretudo depois de ter deixado Paris, e passar a residir definitivamente em Lisboa.
Na capital portuguesa, “começou a relacionar-se muito com algumas pessoas que frequentavam o universo dos fados, o Raul Solnado, o Cardoso Pires e o Carlos do Carmo, e com eles estabeleceu uma nova relação que o inspirou a escrever esses versos.”
Essa nova fase da vida de Júlio Pomar, a partir da década de 2000, também se refletiu na pintura, criando retratos de fadistas como Mariza, Cristina Branco, Marceneiro e Carlos do Carmo.
“Tem tudo muito a ver com relações de cumplicidade e convivência. E ele gostava muito de fazer retratos”, recordou o filho sobre o pintor que deixou várias caixas com manuscritos e alguns textos datilografados.
Alexandre Pomar considera que, “eventualmente, justificava-se publicar as letras para os fados, porque há mais do que as que saíram no disco”.
A apresentação de “Prima Contradição”, obra com 300 páginas, acontece no domingo, às 16:30, no Atelier-Museu Júlio Pomar, em Lisboa, com apresentação da obra pelo historiador e musicólogo Rui Vieira Nery, pela investigadora e escritora Golgona Anghel e pelo curador, crítico de arte, ensaísta e investigador Óscar Faria, e leitura de poemas pela atriz Lia Gama.
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