No livro há um inseto, de fato cinzento, que trabalha num edifício alto como operador de registo de dados. Durante anos, trabalha sem faltas, sem erros, sem promoções e sem condições humanas, porque vive entre as paredes do escritório por não conseguir pagar uma renda.
A narração é feita por esta cigarra, desprezada e desconsiderada pelos humanos com quem trabalha na mesma empresa. Ao fim de dezassete anos, atinge a reforma, despede-se e liberta-se daquela rotina laboral.
O destino da cigarra é desvendado aos leitores nas últimas páginas, com Shaun Tan a acrescentar, na ficha técnica, um pequeno poema do autor japonês Matsuo Bashô, do século XVII: “Brando e calmo/adentra a rocha/o cantar da cigarra”.
“Cigarra” foi publicado originalmente na Austrália em 2018 e chega agora ao mercado português, juntando-se a outras obras ilustradas de Shaun já editadas em Portugal, nomeadamente “Emigrantes”, “A coisa perdida” e “Contos dos Subúrbios”.
Shaun Tan, que nasceu em 1974 na Austrália, é “um magistral contador de histórias visuais, que abre caminho para novas possibilidades dentro do livro ilustrado”, afirmou a organização do prémio sueco Astrid Lindgren Memorial Award, quando o distinguiu em 2011.
As imagens de “Cigarra” foram feitas com acrílico e óleo sobre papel e tela, depois de Shaun Tan ter construído – e fotografado – maquetas com pequenas marionetas para representar cada uma das situações desenhadas, da cigarra e dos outros trabalhadores num escritório.
Na página oficial, Shaun Tan revela algumas das fontes de inspiração para este livro, que conduz o leitor por interrogações sobre trabalho digno, relações laborais, o direito ao descanso e à felicidade e sobre a relação dos humanos com a natureza.
No texto de apresentação de “Cigarra”, Shaun Tan lembra ainda que uma vez em Berlim, em 2005, deparou-se com um prédio cinzento de escritórios, com centenas de janelas e junto ao vidro de uma delas estava uma planta com uma garrida flor vermelha.
“Lembro-me de dizer a um amigo que possivelmente um inseto, uma abelha, ou assim, trabalhava naquele cubículo”, escreveu.
Outra das inspirações foram “A metamorfose”, de Franz Kafka, e o próprio ciclo de vida das cigarras, que podem passar até 17 anos no subsolo até emergirem e transformarem-se num inseto voador.
Sem dar respostas sobre o que cada leitor interpreta dos seus livros, a propósito de “Cigarra” Shaun Tan diz que sempre se interessou “pela forma como as estruturas sociais, políticas e económicas, originalmente criadas para promover os interesses humanos e genuinamente com boas intenções, podem, na verdade, acabar por ser muito desumanizantes e contraproducentes”.
“Somos facilmente escravizados pelos próprios sistemas que deveriam funcionar para nós”, afirmou.
Com obra publicada em quase duas dezenas de países, Shaun Tan soma vários prémios e distinções internacionais, entre as quais a medalha Kate Greenaway, do Reino Unido, por “Contos dos subúrbios”; um prémio no festival de banda desenhada em Angoulême por “Emigrantes”; e um Óscar de melhor curta-metragem de animação pela adaptação de “A Coisa Perdida”.
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