Um espetáculo que parte do universo de Ingmar Bergman para abordar “os nossos demónios”, o medo, o silêncio, Deus e a morte, cruzando música com cinema e teatro, estreia-se na quarta-feira, no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa.
“Os Demónios Não Gostam de Ar Fresco”, com direção artística de Albano Jerónimo e Cláudia Lucas Chéu, é uma coprodução do Teatro Nacional 21 com o São Luiz, que parte do eco que a obra de Ingmar Bergman deixou e de um texto original de Maria Quintans.
O espetáculo consiste na projeção de um filme, por detrás do qual se passam cenas em palco, sempre acompanhado por música ao vivo da violoncelista Eva Aguilar, e termina com a subida da tela, para dar espaço apenas à encenação em palco.
“Mergulharmos neste universo de Bergman, que nos foi sugerido pela autora Maria Quintans, foi inevitável. Ao longo do processo, desenvolvemos essas várias linguagens que vamos apresentar em palco”, afirmou à Lusa Albano Jerónimo.
Ao misturar estas linguagens em cena, os criadores do espetáculo quiseram “homenagear este eco deste legado do Bergman” e ao mesmo tempo convidar o público a conhecer ou a revisitar o autor, cineasta e dramaturgo sueco, através do seu olhar.
Segundo Cláudia Lucas Chéu, o texto de Maria Quintans, sobre o qual trabalharam, está “pejado de referências, muitas delas quase invisíveis” ao trabalho de Bergman, e quando se colocou a possibilidade de utilizar o “dispositivo de cinema, foi precisamente porque era inevitável ter essa relação com o dispositivo cinematográfico”.
Os encenadores esclarecem que não há qualquer pretensão de que o filme tenha alguma semelhança com um filme de Bergman, mas o eco que a sua obra deixou neles enquanto artistas está impresso nesse vídeo que criaram.
O filme “tem uma história relativa. A Maria desenhou uma forma muito simples: convocou as entidades, os demónios do próprio Bergman, entre os quais o medo, a morte e o silêncio, e Deus, e convocou-os para um jantar”, explicou Albano Jerónimo.
Nesta peça de teatro, a morte, o medo e o silêncio são alguns dos amigos mais próximos de Ingmar, que os convida para um jantar em sua casa.
Durante o jantar bebem, comem, alegram-se e criticam-se, levantam questões existenciais entre si e a humanidade, enquanto Ingmar tenta moderar, com alguma dificuldade, o efeito do conflito.
“O Bergman tinha muitos medos, tinha muitos demónios, eu acho que aquilo que ele tinha, todos nós temos. Temos medo da morte, temos os silêncios, os nossos silêncios, temos os nossos medos e medo do medo”, afirma Maria Quintans.
Por isso, a escritora diz que sentiu necessidade de falar sobre Bergman com os seus demónios, “mostrá-los, enfrentá-los, questioná-los e estarem ali, ele e os demónios dele, olharem-se cara a cara”.
Cláudia Lucas Chéu acrescenta que muitas vezes a aproximação da morte, aproxima as pessoas de Deus, mesmo as que não são crentes, como uma “transcendência que surge inevitável”.
Neste espetáculo, Deus só aparece na segunda parte, e é uma mulher, tal como a morte, salienta Maria Quintans, para quem Deus e a morte são muito parecidos.
“Há aqui um casamento entre Deus e a morte. Há uma paixão entre os dois”, acrescenta a autora.
Outra mulher fundamental neste projeto foi a atriz Liv Ullman - que trabalhou e viveu com Ingmar Bergman -, que proporcionou à equipa uma residência artística no Bergman Centre.
Maria Quintans enviou-lhe o seu texto “Os Demónios Não Gostam de Ar Fresco” traduzido, e Liv Ullman “não só gostou, como potenciou toda uma residência artística, e nós orgulhosamente dizemos que o Teatro Nacional 21 foi a primeira estrutura profissional a fazer uma residência artística no Bergman Center”, afirmou Albano Jerónimo.
Maria Quintans contou como recebeu uma chamada da Noruega, que atendeu julgando ser um daqueles telefonemas de fraudes, e quase desmaiou quando ouviu do outro lado a voz de Liv Ullman.
A atriz e diretora de cinema sueca gravou um texto para o espetáculo, que se ouve em ‘voz-off’ no início do filme, enquanto as imagens acompanham a aproximação por mar à ilha de Farö, onde fica o Bergman Center.
Albano Jerónimo adiantou que há um documentário sobre a residência que fizeram, que vai estar no ‘foyer’ do teatro.
Sobre esta experiência, o encenador confessou que o silêncio sentido na ilha confrontou-o com os seus limites e com o que não sabe, mas também lhe deu uma grande perspetiva de materializar e de foco naquilo que quer falar.
Cláudia Lucas Chéu destacou a surpresa que teve ao perceber que ia estar a trabalhar na casa onde viveu e trabalhou Ingmar Bergman, a escrever no escritório que foi o seu escritório, numa casa que “poderia ser um museu, com todos os seus materiais”, uma experiência que sentiu com “um certo nível de irrealidade”.
Para Maria Quintans, amante confessa de Bergman, esta vivência foi ainda mais transcendente, pois permitiu-lhe “sentir os fantasmas dele dentro da casa, porque se sente, digam o que disserem, eles existem”.
“E depois, não se ouve nada, só se ouve, quando abrimos um bocadinho a porta, o mar, que fica em frente à casa. É maravilhoso”, acrescentou.
Sobre o final, quando a encenação passa exclusivamente para o palco, os artistas preferiram manter segredo, porque o espetáculo “vive também um pouco dessa adrenalina”, mas Albano Jerónimo deixa uma pista: “Foi inevitável falarmos daquilo que nós estamos a viver no nosso país, sobretudo, convocar pessoas para palco, para sermos muitos a falar sobre aquilo com que nós não concordamos, e que nos inquieta”.
O espetáculo termina com Albano Jerónimo a varrer e Cláudia Lucas Chéu a aspirar o palco, o que não é por acaso, “é uma gentil limpeza”, classifica o encenador.
“De uma forma muito literal, nada metafórica, vamos aspirar os restos que nos dão para aspirar, portanto, aquilo que sobra”, acrescenta Cláudia Lucas Chéu.
O espetáculo vai estar em cena até dia 14 de abril e conta com as interpretações de Luís Puto, Rita Loureiro, Íris Cayate, Maria Ladeira e Ivo Alexandre, sendo o vídeo da responsabilidade de Henrique Pina.
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