A distância entre a distopia e a utopia pode ser curta, contam-nos as criadoras de uma série cujo mergulho no absurdo talvez já não pareça tão exagerado depois de uma pandemia e de um mundo atravessado por cada vez mais extremismos.
Ambientada numa Florida imaginária, "Teenage Euthanasia" regressa a partir desta sexta-feira, 28 de julho, com uma segunda temporada que volta a acompanhar uma família disfuncional. Estreada em 2021 no Adult Swim, bloco de animação para adolescentes e adultos da Cartoon Network, chegou a Portugal através da HBO Max, plataforma que disponibiliza mais uma vez os novos capítulos desta comédia negra com acessos fantásticos e sci-fi.
A protagonista, Euthanasia, uma adolescente insegura, continua a lidar com um quotidiano delirante ao lado da mãe, a egocêntrica Trophy, que morreu e ressuscitou com corpo cinza; da avó, Baba, marcada por uma vida dura entre a Rússia e os EUA; e do tio, Pete, praticamente inseparável da matriarca do clã Fantasy.
Alyson Levy, que tem já um longo currículo na animação como argumentista e produtora ("Xavier: Renegade Angel", "Delocated"), e Alissa Nutting, escritora e professora universitária de escrita criativa, falaram ao SAPO Mag por Zoom das especificidades destas personagens e do que as levou a querer contar a sua história.
SAPO Mag - A segunda temporada de "Teenage Euthanasia" está quase a estrear-se, mas como surgiu a primeira? De que forma começaram a colaborar numa série e que ideias tinham?
Alyson Levy - Tenho uma longa relação com a Adult Swim e já fiz muitas séries lá. Mas o meu grande sonho era fazer uma série de animação de meia-hora. Estava à procura de uma mulher com quem trabalhar e li um conto da Alissa. Achei-o muito divertido, estranho e singular: era exatamente a sensibilidade que procurava. Conhecemo-nos, demo-nos bem e começámos a trabalhar num guião. Fomos contactadas pelo Mike Lazzo, o antigo vice-presidente da Adult Swim, que nos desafiou para um projeto no qual começámos a trabalhar. Teve um desenvolvimento muito longo, fizemos muitas mudanças no tipo de animação e nas relações entre as personagens. Estávamos prontas para escrever a série quando a pandemia começou, por isso tratámos da escrita através de reuniões no Zoom. Devemos ter sido das primeiras a fazê-lo. Foi uma coisa louca a seguir a outra... Mas de alguma forma, tivemos sorte e a insanidade e longa gestação levou precisamente à série que queríamos mesmo fazer.
SAPO Mag - Alyson, mencionou que procurava trabalhar com outra mulher e três das personagens principais da série também são mulheres. Até que ponto essa opção foi deliberada? Consideram a série feminista, mesmo que os protagonistas que escolheram provavelmente não o sejam?
Alyson Levy - Para mim, surgiu de forma muito natural. Queríamos escrever personagens e histórias que nunca tivéssemos visto. E somos ambas mulheres, somos ambas mães de filhas, e queríamos fazer uma história que cruzasse gerações. Já tinha colaborado com muitos homens. Entretanto as pessoas viram a série e começaram a dizer-nos: "Têm muitas mulheres a falar aqui, não têm?". Nem me tinha ocorrido isso, mas temos certamente a série com mais personagens femininas em destaque da Adult Swim, e talvez de qualquer série de animação atual. Não sei. É invulgar, mas surgiu naturalmente, era o que queríamos fazer.
Alissa Nutting - E a série também acaba por comentar padrões de beleza e a forma como a internet e as redes sociais os determinam. Nesse aspeto, acho que é muito feminista. Mas a Trophy não é seguramente feminista. Acho que ela não gostaria dessa palavra.
SAPO Mag - Que elementos da primeira temporada queriam manter na segunda e o que procuraram acrescentar?
Alissa Nutting - Estamos empolgadas com este universo e procurámos aprofundá-lo e expandi-lo. É uma versão paralela da Florida simultaneamente pré e pós-apocalítica, mas ao mesmo tempo com muitos elementos da verdadeira. Tem os elementos mais estranhos da Florida levados ao extremo. Foi muito divertido continuar a explorá-los e a ter muitas vozes convidadas incríveis.
Alyson Levy - Passámos muito tempo da primeira temporada a construir as personagens. Foi muito divertido desenhar as suas dinâmicas e poder agora consolidá-las. E também mergulhar um pouco no seu passado, perceber como é que a Baba foi para os EUA, conhecer parte da história do Pete e da Trophy... O primeiro episódio da segunda temporada recorda o passado da Trophy na adolescência, e sempre quis fazer isso, explorar o conceito de viagens no tempo de forma muito tonta. Ela usa as suas capacidades de forma tão narcisista...
SAPO Mag - Apontaram que a segunda temporada vai explorar os elementos mais extremos da Florida. Costumam questionar-se se estarão a ir longe demais? Discutem muito esses limites?
Alyson Levy - Julgo que isso nunca acontece. O mundo e a Florida é que estão a ir longe demais. (risos)
Alissa Nutting - A animação demora tanto tempo a ser feita que nunca pensámos que o mundo teria tantos avanços do fascismo quando a temporada estivesse pronta. Tem sido desconcertante. Quando começámos a pensar na série, imaginámos uma distopia. Mas agora parece uma utopia face ao que tem acontecido na Florida, aos horrores políticos que têm decorrido aqui.
SAPO Mag - Alyson, referiu que queria fazer algo diferente do que já tinha feito para a Adult Swim. Em quem medida é que esta série se distingue de outras do universo dos estúdios, além da predominância de personagens femininas?
Alyson Levy - As histórias que contamos são um pouco difíceis de categorizar. Têm ficção científica, mas por outro lado a Trophy também tem capacidades sobrenaturais. Não sei, para mim a série é sobre o que eu e a Alissa consideramos engraçado e interessante. Não procuramos comentar muito a cultura pop, como noutras séries de animação. Procuramos antes explorar o aburdo a partir das nossas personagens.
Alissa Nutting - Centra-se numa família alternativa de personagens emocionalmente desgastadas e permite que contemos várias histórias sobre o contexto familiar. O que é uma família e como nos afeta, os aspetos difíceis e trágicos. Temos duas personagens que estão ligadas de forma muito extrema e outras que evitam aproximar-se. De certa forma, acaba por ser uma história de amor familiar clássica e acho entusiasmante acompanhá-la.
SAPO Mag - Hoje em dia há muitas séries e plataformas, como nunca antes. Mas também há muitas séries canceladas regularmente. Como receberam a notícia da confirmação de uma segunda temporada? Foi mais desafiante desenvolver esta ou a primeira?
Alyson Levy - O meu plano inicial era fazer duas temporadas porque sei o quão difícil é. É muito difícil passar do episódio piloto para uma série e depois conseguir uma nova temporada. E agora nunca mais quero deixar de a fazer... Sinto que temos muita sorte por poder fazer a segunda. Não é fácil para séries pequenas. Não somos famosas, não temos milhões de seguidores no Instagram, esta é a nossa paixão e projeto artístico.
Alissa Nutting - Foi a minha primeira série de animação, por isso aprendi muito. Sobretudo porque a primeira temporada foi feita durante a pandemia. Por isso foi muito bom poder fazer a segunda, já com maior conhecimento, podendo focar-me noutros aspetos da história e da produção.
SAPO Mag - Costumam ver muita animação ou tendem a estar mais focadas no género através dos vossos projetos? Há alguma série ou filme que vos tenha surpreendido recentemente?
Alyson Levy - Pergunta interessante... Vejo muita animação com os meus filhos, sobretudo "Bob's Burgers". E agora a minha filha de 14 anos descobriu "South Park", que tem centenas e centenas de episódios. Nunca tinha visto muito, mas há um motivo para as pessoas gostarem: tem mesmo muita piada.
Alissa Nutting - Um dos filmes favoritos da minha filha é uma animação em stop motion, "A Minha Vida de Courgette" [filme de 2016 do suíço Claude Barras]. E uma das coisas que adoro nessa história é arrancar com a morte da mãe do protagonista, o que o leva a ser enviado para um orfanato. Suponho que muitas pessoas olhassem para uma premissa destas e diriam que é demasiado negra. Mas acho que é por isso que a minha filha adora o filme, por não tentar fazer com que o mundo pareça melhor do que aquilo que é. E julgo que não costumamos ser muito honestos com as crianças em relação a isso. Acho que o "Pinóquio" do Guillermo del Toro também fez isso muito bem recentemente.
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