O sucesso de audiências da Netflix "O Problema dos 3 Corpos", uma adaptação da joia da ficção científica chinesa, gerou debates intensos e dividiu opiniões entre os fãs do país.

O serviço de streaming não está oficialmente operacional na China, mas isso não impediu que os fãs mais devotos tivessem acesso à série, provavelmente através de serviços VPN ou 'sites' de streaming ilegais.

Entre as dezenas de milhares de comentários deixados numa plataforma de críticas, as reações variaram de deceção com as mudanças de enredo e personagens, à indignação nacionalista e ao otimismo de que o perfil da série aumentaria a representação da literatura e do cinema chineses.

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A série baseia-se nos livros de Liu Cixin, uma superestrela doméstica que os leitores às vezes chamam de "Deus", e a sua trilogia "a bíblia da ficção científica chinesa".

"As obras originais têm uma influência enorme. Muitos fãs dos livros sabem de cor todos os detalhes das personagens dos livros, por isso têm dificuldade em aceitar mudanças", disse à France-Presse (AFP) Li Dongdong, fundador da comunidade chinesa de filmes de ficção científica Geek Movie.

Adaptações anteriores produzidas na China levaram em conta essa atenção obsessiva aos detalhes - Liu disse recentemente numa conferência que sugeriu fazer uma pequena mudança visual num enredo recorrente, apenas para ser informado: "Não o pode alterar para o tornar irreconhecível! "

Para muitos, a adaptação do Netflix fez isso.

Liderada pela equipa por trás da série de sucesso " A Guerra dos Tronos", transfere a maior parte da ação para o Reino Unido e muda as nacionalidades e géneros de algumas das personagens principais.

Um crítico chinês comparou a série a "um prato de frango do General Tso", um prato chinês ocidentalizado que pode ser usado como metáfora para a inautenticidade e a incompreensão cultural.

'Oportunidade falhada?'

O desacordo com as escolhas criativas dos criadores não se limita à China.

A série foi a mais vista na Netflix na sua segunda semana, mas as críticas foram mistas, com a revista Rolling Stone a chamar-lhe "uma grande oportunidade falhada".

Algumas das críticas chinesas, porém, são influenciadas pela política, num contexto de tensas relações entre os EUA e a China.

Muitos comentadores questionaram o motivo da decisão de manter o vilão chinês, enquanto os heróis são interpretados principalmente por ocidentais.

“Deixando de lado outras coisas, o elenco mostra mais uma vez que os americanos são ideólogos (políticos)”, dizia uma das críticas mais populares.

Outros questionaram a forma como a série retrata a história chinesa.

A produção começa na década de 1960, com uma cena horrível onde um físico é morto por uma multidão por se recusar a renegar teorias científicas importantes.

O seu uso como cena de abertura levou alguns nacionalistas 'online' a acusar a Netflix de fazer toda a série apenas para retratar a China sob uma luz negativa.

“É fazer uma bandeja inteira de bolinhos apenas para provar um pouco de vinagre”, escreveu um utilizador da rede social Weibo.

Porém, para os devotos de "O Problema dos 3 Corpos", a cena é fundamental para compreender as motivações do antagonista da série.

“Só o enredo da década de 1960 merece uma crítica de 5 estrelas”, disse outro comentador.

'Grande incentivo'

Outros fãs gostaram da história mais rápida e simples, que, segundo eles, torna a obra mais acessível e atraente para o público em geral.

“A adaptação da Netflix faz-me realmente entender pela primeira vez o encanto desta obra de ficção científica”, disse à AFP Harry Zhou, fã de ficção científica de Pequim, de 31 anos, admitindo que tentou e não conseguiu terminar os livros originais várias vezes.

A popularidade da série também trouxe atenção global para o trabalho de Liu e para a ficção científica chinesa em geral.

“Tenho certeza de que mais pessoas irão reler a história original depois de ver isto”, partilhou o famoso criador de jogos japonês Hideo Kojima na rede social X (antigo Twitter).

"As pessoas de outros países podem agora ver que os escritores chineses são capazes de escrever grandes obras de ficção científica. Isto aumentará a presença da ficção científica chinesa", disse Zhou.

O envolvimento da Netflix é visto como um voto de confiança no género.

"A ficção científica chinesa está a ser reconhecida com investimento em dinheiro real... é um grande incentivo para a comunidade chinesa de criadores de ficção científica", disse Li, da Geek Movie.

“É um pequeno passo para (Liu Cixin), mas é um grande passo para a criação de ficção científica chinesa”, concluiu.