Nascida em Cuba, pouco antes de ir para Cabo Verde, Mayra Andrade, 39 anos, viveu em muitos países e todos eles contribuíram para as suas composições, que podem ser agora revisitadas no álbum “reEncanto”, que será lançado a 11 de outubro.
O álbum reúne composições da sua autoria, algumas com mais de 20 anos e marcos na sua carreira, como “Manga”. À sua voz, Mayra juntou apenas o violão de Djodje Almeida e o álbum foi gravado ao vivo na Union Chapel, em Londres, durante um dos 40 espetáculos que o par apresentou em vários países.
“Foi interessante. Algumas destas músicas eu escrevi com 18 anos, hoje tenho 39 (…) e apercebi-me que há coisas que eu escrevi, antes mesmo de terem sentido, e hoje em dia consigo perceber essas histórias e vê-las de uma forma muito mais inteira do que quando as escrevi”, disse, em entrevista à agência Lusa.
O projeto nasceu quando Mayra estava grávida e sentiu “uma necessidade muito grande de ter um encontro íntimo com o público”.
“O público sempre me viu com bandas e, de repente, descobriu-me no formato original, que é voz e violão, que é uma forma muito crua, muito direta, muito honesta”, prosseguiu.
E esclareceu: “Na verdade, eu nunca deixei de estar em voz e violão, simplesmente nunca fiz deste formato o formato para um disco e para uma tournée, mas o violão acompanha-me sempre; eu componho no violão, é o instrumento base da música tradicional cabo-verdiana, e não só. Então, para mim a voz e o violão é casa”.
Após a faixa “Afeto” ter sido disponibilizada nas plataformas digitais, seguiu-se recentemente “Navega”, um tema que “fala da mulher do pescador que brava o mar todos os dias e que ora a Deus para que seja generoso o suficiente para deixá-lo retornar a terra”.
“É a realidade de muitas mulheres cabo-verdianas que veem os seus maridos, os seus filhos a irem para o mar”, observou a cantora, recordando a terra que traz sempre presente.
“Eu sou Cabo Verde. É só estar viva que eu já estou em Cabo Verde (…). O cabo-verdiano é um povo de imigração, que tem os seus tentáculos no mundo. Às vezes, a pessoa está mais em Cabo Verde aqui num bairro em Lisboa, em Providence, Rhode Island, nos Estados Unidos, do que em certos bairros em Cabo Verde”.
Desafiada a eleger um dos temas deste novo álbum, Mayra Andrade apontou “Konsiénsia” (consciência, em crioulo), que escreveu aos 18 anos.
“Eu sempre tive uma capacidade de empatia muito forte com as coisas que acontecem no mundo e sempre vivi com um sentimento de impotência e de nunca fazer o suficiente ou não fazer o mínimo até para contribuir para a mudança do mundo. Escrevi esta música para a minha própria consciência e onde peço para ela não me deixar viver num estado de indiferença perante a injustiça, perante a desigualdade e peço ao meu sangue para ferver nas minhas veias e chegar ao coração para que a gente possa viver com mais humanidade”, disse.
Em Lisboa, onde vive, Mayra sente-se em casa e é com bons olhos que vê a multiculturalidade da capital portuguesa: “A minha multiculturalidade vem do berço. Ser cabo-verdiano já é ser multicultural. Eu tenho um percurso de vida muito itinerante, vivi em muitos países desde a infância e isso moldou a minha forma de ser, de estar, de ver o mundo, de fazer música. A multiculturalidade em Lisboa, de alguma forma, veio a calhar, alinha-se com a minha multiculturalidade e faz com que eu me sinta ainda mais em casa em Lisboa”.
Mayra revela que escolheu viver na zona do Intendente, em Lisboa, precisamente “pela multiculturalidade do bairro, de sair na rua e ouvir falar em diferentes línguas”.
“Tenho muito orgulho que a minha filha esteja numa creche aqui, porque vai à escola e vê meninos de todas as culturas e eu quero que ela cresça assim. É uma grande oportunidade que Lisboa está a ter de crescer, de se enriquecer e de estar à altura do que o mundo precisa para o futuro”.
E aconselha aos preconceituosos que façam ‘reset’ e que entendam que todos são efetivamente iguais.
“Precisamos de ter acesso às mesmas oportunidades, porque enquanto houver desequilíbrio, ninguém vai estar bem, ninguém vai ser feliz, ninguém vai estar seguro”, afirmou.
“O cabo-verdiano é um povo migrante e é um povo resiliente. Acho que a nossa história obrigou-nos, para sobrevivência, a ter que existir longe dos nossos e das nossas ilhas e não é fácil. E, de alguma forma, cantar é a minha forma de trazê-los mais perto de casa e de me inspirar também dessas histórias de vida para a música que eu faço, nomeadamente uma que se chama Vapor Di Imigrason [Vapor da Imigração, em crioulo]", disse.
Orgulhosa de pertencer a uma nação que teve Amílcar Cabral como “pai”, Mayra Andrade disse que tem feito a sua parte na divulgação da palavra do líder africano, tendo recentemente usado um súmbia (boné que era a imagem de marca de Cabral) no anúncio do Festival da Paz no Tarrafal, em que participou.
Mayra não sente que o centenário de Cabral esteja a ser honrado e celebrado como devia e por isso tem falado do líder africano durante os seus últimos concertos.
“É importante que cada um, dentro dos meios que tem, traga à tona certos nomes, e Cabral é um deles”, indicou.
Das várias mensagens que Cabral deixou, Mayra escolhe a importância que este sempre deu à educação e ao investimento na infância, citando-o: “As crianças são a flor da revolução”.
Mayra Andrade atua hoje, em Barcelona, no Festival La Mercé, tendo ainda concertos agendados para terça-feira no Teatro del Canal, em Madrid, e quinta-feira no Staatstheater, em Hannover (Alemanha).
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