Os receios de Tom Barman foram manifestamente exagerados. Há poucos dias, em entrevista ao SAPO Mag, o vocalista dos dEUS confessava que mal tinha conseguido dormir em algumas noites quando confrontado com o processo - "matemático, emotivo, tenso e libertador" - da seleção de canções a levar a palco na mais recente digressão europeia da banda.

Mas quem viu o regresso dos belgas ao Coliseu dos Recreios, em Lisboa, na noite deste domingo, 2 de abril, dificilmente adivinharia esse estado de tensão permanente. Não só pela segurança inabalável que o frontman manteve durante quase duas horas, mas sobretudo pelo acolhimento de braços abertos de todas as canções, tanto as antigas como as novas, por parte de uma sala muito concorrida.

É difícil, ainda assim, não começar por recordar a última. Um dos clássicos mais remotos do quinteto de Antuérpia, "Suds & Soda" (repescado do disco de estreia, "Worst Case Scenario", de 1994), fez-se ouvir já depois do encore e resolveu outro incómodo que prometia voltar a tirar o sono a Barman, pelo menos esta noite. Depois de se ter queixado mais de uma vez, ao longo da atuação, da distância entre a banda e o público, o vocalista convidou os espectadores a aproximarem-se e a subirem a palco, apelo a que largas dezenas de fãs acederam prontamente.

Resultado: um momento de euforia generalizada que vem carimbar o já extenso álbum de memórias dos belgas por cá, eles que são alvo de culto sério e fidelíssimo desde meados dos anos 1990, quando se afirmaram como uma das forças do rock europeu dito alternativo. E com concertos assim, percebe-se porquê. Tirando este remate apoteótico, nem se pode dizer que tenha sido uma surpresa: "apenas" mais um ótimo espetáculo de um grupo do qual poucos ou nenhuns dos presentes esperariam menos.

dEUS no Coliseu de Lisboa
dEUS no Coliseu de Lisboa créditos: Gonçalo Sá

Se no final jogaram um dos trunfos mais fortes da sua discografia, tornando-se ainda mais valioso por ter sido uma estreia nesta digressão, os dEUS começaram, e também muito bem, com a colheita que motivou a visita. A de "How to Replace It", oitavo e muito aguardado disco, que chegou em fevereiro depois de um hiato de 11 anos (o mais longo de sempre deste percurso).

A (excelente) faixa-título já abria o alinhamento do álbum e teve as mesmas honras no concerto, com Barman a aproximar-se do registo spoken word e a ensaiar um modo implosivo antes da explosão no final. Seguiu-se "Must Have Been New", também à semelhança do alinhamento do disco, mas a partir daí a banda meteu prego a fundo e seguiu para outras paragens. A tensa "Constant Now", recordação de "Keep You Close" (2011), gerou um disparo notório nas ovações, "The Architect" representou "Vantage Point" (2008) com uma ginga funky que não destoou ao lado da mais inesperada "Girls Keep Drinking", a primeira de duas passagens por "Following Sea" (2012) - "Quatre Mains", cantada em francês, foi a segunda, num dos episódios mais elétricos e eletrizantes.

dEUS no Coliseu de Lisboa
dEUS no Coliseu de Lisboa créditos: Stefani Costa/Hedflow

Pouco previsível foi também a escolha de "W.C.S (First Draft)", resgatada do álbum de estreia e a meio caminho entre o jazz e o hip-hop. Já "Instant Street", estranhamente a única canção da obra-prima "The Ideal Crash" (1999) com direito a marcar a noite, era das mais esperadas por muitos. A inesquecível e sempre bem-vinda trepidação de guitarras no final tratou de o confirmar, mas bastaram os acordes iniciais para convocar a maior disseminação de telemóveis em riste do concerto. Na mesma vertente expansiva, "Sun Ra" e "Bad Timing" honraram "Pocket Revolution" (2005), com a profusão de riffs da primeira a colocar a hipótese de os dEUS se candidatarem a banda de estádio.

A desopilante "Fell Off the Floor, Man" e "For the Roses", outro clássico em frenesim, também não faltaram à chamada. "São sempre canções de amor, até a 'Roses'", assinalou Barman já no encore, numa das suas poucas intervenções - e foram poucas, explicou, porque se expressou maioritariamente em português, confessando sentir-se nervoso uma vez que a professora estava presente.

Não que alguém tenha levado a mal o vocalista ter sido relativamente parco em palavras. Interpretações como a da belíssima "Love Breaks Down", uma das novas canções de (des)amor, compensaram plenamente essa limitação, neste caso num registo crooner memorável. O tom aveludado também assentou bem na melancolia de "1989", um dos primeiros singles de "How To Replace It", enquanto que "Man of The House" ajudou a confirmar que boa parte dos novos temas não fica a dever nada a muitos dos antigos: do arranque eletrónico e enigmático ao remate com um desvario de guitarras, foi dos acessos mais vertiginosos.

"Pirates", com Barman ao melhor estilo sussurrante, e "Faux Bamboo", assente nos teclados de Klaas Janzoons (além do vocalista, o único elemento da formação original dos dEUS), foram outros grandes motivos para (re)descobrir o novo disco, juntamente com o convite dançável de "Simple Pleasures". Faltou "Dream Is A Giver", ponto alto de um álbum que mostra uma banda nada interessada em viver da nostalgia, mas pode ser sempre uma pista a explorar num regresso mais do que provável.

Se "How To Replace It" já sugeria ter compensado a espera de mais de dez anos, a coesão de Stéphane Misseghers na bateria e percussão, de Alan Gevaert no baixo e de Mauro Pawlowski na guitarra, ao lado de Barman (às vezes a acrescentar outra guitarra, bateria digital ou pandeireta) e Janzoons (que também se ocupou do violino), alcançou voos ainda mais assinaláveis ao vivo. Abrilhantada por uma cenografia elegante e muito eficaz, quase sempre a partir de uma faixa de luzes na diagonal ao fundo do palco, teve correspondência na entrega de uma imensa minoria que continua decidida a voltar ao lugar onde já foi feliz desde a adolescência (tendo em conta a faixa etária de 30 e 40 anos dominante entre o público), e agora com novas canções a juntar ao cânone. Até porque, adolescente ou não, nunca é tarde para subir a palco com a banda de uma vida...

Alinhamento do concerto:

How to Replace It
Must Have Been New
Constant Now
The Architect
Girls Keep Drinking
Man Of The House
W.C.S (First Draft)
1989
Pirates
Faux Bamboo
Instant Street
Fell Off the Floor, Man
Simple Pleasures
Quatre mains
Sun Ra

Encore:

Roses
Love Breaks Down
Bad Timing
Suds & Soda