A caminho dos
Óscares 2021
"Nomadland - Sobreviver na América" foi o vencedor do Óscar de Melhor Filme e de mais duas estatuetas (Melhor Realização e Melhor Atriz) naquela que foi porventura a cerimónia dos Óscares mais estranha em 93 anos de prémios, não só a fazer jus às circunstâncias da pandemia mas também pelo desfecho da noite.
Já nos cinemas portugueses, o filme conta a história de uma mulher que viaja pela América como nómada, vivendo numa caravana, trabalhando em empregos temporários e sobrevivendo na estrada, na sequência de uma crise económica. Embora seja uma ficção, assenta em testemunhos reais de norte-americanos que vivem na estrada, sempre em trânsito, numa comunidade nómada mais envelhecida e nas margens da sociedade.
Numa cerimónia elegante e intimista, apesar de marcada pelo distanciamento social na Union Station de Los Angeles (convincentemente transformada em "casa" dos Óscares), que evitou discursos por zoom, com ligações por satélite a nomeados espalhados por Londres, Paris, Kilkenney (Irlanda), Praga, Roma, Estocolmo e Sydney, os produtores Steven Soderbergh, Stacey Sher e Jesse Collins (os dois primeiros foram respetivamente o realizador e produtora do filme "Contágio"), sabendo que dificilmente poderia evitar as audiências televisivas mais baixas de sempre, aproveitaram as circunstâncias de um evento adaptado ao impacto da pandemia para fazer experiências.
A abertura foi como um filme, baralhou-se a ordem mais ou menos tradicional dos prémios, os apresentadores estavam no meio do público e os tradicionais excertos dos filmes foram substituídos por apresentações mais longas sobre as origens e inspirações dos nomeados. Se a escolha destacou os artistas e a sua diversidade, acabaram por faltar os aplausos aos seus nomes e o consequente "calor humano" na sala envolvente da Union Station.
O respeito artístico estendeu-se ao espaço "In Memoriam", de homenagem aos artistas falecidos desde a última cerimónia, que ao som de "As", de Stevie Wonder, conseguiu destacar, ainda que a um ritmo estonteante, 95 nomes em vez dos habituais pouco mais de 50, o que originava invariavelmente queixas sobre omissões.
Com a interpretação das cinco canções nomeadas a passar para o "pre-show", a cerimónia também foi a mais curta dos últimos oito anos, apesar de, como seria de prever por causa do perfil dos produtores, os discursos não terem sido cortados pela música (o que alguns premiados souberam aproveitar melhor do que outros), o que originou momentos tocantes, mas também por vezes quebrou ainda mais o ritmo morno, a confirmar que, após três anos em falta, está a precisar de um anfitrião.
Mas a maior experiência de todas foi, pela primeira vez desde que foi entregue um prémio honorário a Charlie Chaplin em 1972, deixar para último troféu não o de Melhor Filme, mas Melhor Ator, uma escolha que se revelou estranha: os produtores estavam certamente a contar que Chadwick Boseman ganhasse a título póstumo e a sua viúva subisse ao palco para fazer mais um discurso emotivo, como aconteceu noutras cerimónias, mas o tiro saiu pela culatra quando Joaquin Phoenix anunciou que a estatueta ia para Anthony Hopkins, exatamente como aconteceu nos prémios BAFTA da Academia Britânica.
O final acabou por ser anticlimático e pouco "cinematográfico": praticamente três décadas após a vitória por "O Silêncio dos Inocentes", o ator de 83 anos tornou-se o maior veterano a ganhar na categoria com "O Pai" (chega aos cinemas a 6 de maio), mas como não estava em Los Angeles nem na "hub" de Londres, mas num hotel no País de Gales, não houve discurso de agradecimento e a cerimónia acabou a correr e sem o seu habitual ponto alto de entusiasmo. Talvez uma forma irónica de recordar mesmo ao cair do pano como tudo foi estranho no ano passado (e continua a ser) e se premiaram filmes que quase ninguém teve oportunidade de ver nos cinemas.
Veja o desfile das estrelas na passadeira vermelha:
Num palmarés muito repartido onde "Os 7 de Chicago" foi o único dos oito nomeados para Melhor Filme a não receber qualquer prémio, "Nomadland", que tinha seis nomeações, acabou por receber mais duas estatuetas para além da de Filme: Melhor Atriz e Melhor Realização.
Batendo Vanessa Kirby (“Pieces of a Woman”), Andra Day ("Estados Unidos vs. Billie Holiday”), Carey Mulligan ("Uma Miúda com Potencial") e Viola Davis ("Ma Rainey: A Mãe do Blues") na que era considerada a categoria mais imprevisível da noite, sem fazer campanha Frances McDormand recebeu o terceiro prémio da sua carreira e o segundo por filmes seguidos, depois de ter vencido com "Três Cartazes à Beira da Estrada" em 2017. Juntou outra estatueta como uma produtora (um feito único entre atrizes) e apelou no seu discurso para que os filmes dos Óscares fossem vistos nos cinemas (algo que a cerimónia se calhar recordou menos do que se esperava).
Por sua vez, Chloé Zhao fez história como a segunda mulher e a primeira de origem asiática a ganhar o Óscar de Melhor Realização (sucedendo a Kathryn Bigelow por "Estado de Guerra"... em 2009) e também recebeu uma segunda estatueta enquanto produtora, escapando-lhe as de Argumento Adaptado e Montagem.
A cineasta regressou à sua infância na China durante uma parte do seu discurso, recordando um jogo com o pai para memorizar poemas e textos clássicos e um dos que se destacou explica o que a atraiu para a história do seu filme: "À nascença, as pessoas são inerentemente boas. Estas palavras tiveram um impacto tão grande em mim quando era pequena. Ainda hoje, acredito verdadeiramente nelas. Mesmo que pareça que o oposto é verdade, sempre encontrei bondade nas pessoas que conheci à volta do mundo", disse.
Não obstante, a transmissão da cerimónia foi bloqueada na China, a imprensa local não mencionou as vitórias da realizadora e milhares de comentários com o seu nome ou "Nomadland" desapareceram das redes sociais: em causa estão alegados comentários críticos que fez sobre o regime do país em 2013.
Sem surpresas acabaram por ser entregues os outros prémios de interpretação. Daniel Kaluuya conquistou o Óscar de Ator Secundário, pelo desempenho em "Judas e o Messias Negro" (sem estreia anunciada em Portugal), descrevendo no seu emotivo discurso como foi inspirado pela sua personagem do líder dos Black Panther Fred Hampton, antes de deixar a mãe e irmã petrificadas em direto de Londres ao dizer que "temos de celebrar a vida" e recordar "é incrível, a minha mãe conheceu o meu pai, tiveram sexo, é espantoso. Percebem o que estou a dizer? Estou aqui!".
Mais circunspecta (por comparação) foi Youn Yuh-jung, que se tornou com "Minari" (dia 13 de maio nos cinemas) a primeira intérprete sul coreana a ganhar a estatueta dourada como Atriz Secundária. Muito entusiasmada por conhecer Brad Pitt, a atriz não se esqueceu de homenagear as outras nomeadas, destacando especificamente Glenn Close, que perdeu a estatueta pela oitava vez.
"Não acredito em competição. Somos as vencedoras por filmes diferentes, interpretámos personagens diferentes, portanto não podemos competir umas com as outras. Estou aqui porque tive um pouco de sorte, acho, tenho mais sorte do que vocês", comentou a estrela que, no cinema da Coreia do Sul, tem uma importância comparável à de Meryl Streep.
A abertura da cerimónia foi como um filme... em tom político
Cumprindo a promessa de se parecer com um filme, a cerimónia abriu com um genérico enquanto um longo "travelling" acompanhava Regina King pela Union Station até ao palco, onde as primeiras palavras foram invulgares.
"Tenho de ser honesta, se as coisas tivessem sido diferentes esta semana passada em Minneapolis, podia ter trocado os meus saltos altos por botas [...] Sei que muitos de vocês querem pegar no vosso comando quando sentem que Hollywood vos está a dar conversa, mas como a mãe de um filho negro, sei o medo com que tantos vivem e nenhuma quantidade de fama ou dinheiro muda isso", referiu a atriz, recordando o veredito de culpado do assassinato de George Floyd contra Derek Chauvin.
A vencedora do Óscar de Melhor Atriz Secundária (e realizadora de "Uma Noite em Miami...", um dos filmes nomeados) recordou as regras COVID-19 para a cerimónia, como todos terem sido testados mais do que uma vez, o público estar socialmente distante e, como na rodagem dos filmes, a máscara ter de ser colocada quando as câmaras não estivessem a trabalhar. Prosseguiu para anunciar o primeiro troféu da noite, entregue a Emerald Fennell pelo Argumento Original de "Uma Miúda com Potencial", que acabou por ser a única estatueta para o filme entre cinco nomeações (chega aos cinemas esta quinta-feira).
De facto, com "Minari" a ganhar o Óscar de Atriz Secundária, o único dos oito nomeados para Melhor Filme a não receber qualquer prémio em seis nomeações foi "Os 7 de Chicago".
"O Pai" ganhou a primeira das duas estatuetas (em seis nomeações), pelo Argumento Adaptado, dividida a meias entre o francês Florian Zeller, o autor da peça original e que realizou o filme e Christopher Hampton, que há mais de 30 anos recebia a primeira por “Ligações Perigosas” e que tem a curiosidade de, apesar da nacionalidade britânica, ter nascido na ilha da Faial, nos Açores, devido à profissão do pai britânico, engenheiro de telecomunicações (Zeller e Hampton vão voltar a colaborar na adaptação ao cinema de “The Son”, uma espécie de sequela espiritual de “O Pai”, que será protagonizado por Hugh Jackman e Laura Dern).
Apesar de lhe continuar a escapar o maior prémio, os filmes da Netflix conseguiram sete estatuetas, mais do que qualquer outro estúdio. O que ficou mais perto foi a Disney com cinco, através da Searchlight Pictures com os três de "Nomadland" e da Pixar com dois para a animação "Soul - Uma Aventura com Alma".
Nas vitórias para a plataforma destaca-se "Mank", de David Fincher, que partia com dez nomeações, mais do que qualquer outro filme, e ficou pela previsível estatueta pela Direção Artística e uma segunda, mais surpreendente, pela Fotografia a preto e branco (dois anos depois de "Roma"), onde se esperava mais uma vitória de "Nomadland". Erik Messerschmidt conseguiu o feito invulgar de ganhar com o primeiro filme, depois de ter filmado a série "Mindhunter" para Fincher.
"Judas e o Messias Negro" foi outro nomeado para Melhor Filme que conseguiu uma segunda estatueta (em seis nomeações) também inesperada, a de Melhor Canção para "Fight for You", de H.E.R., Tiara Thomas e D'Mile, categoria que se acreditava que seria decidido entre "Uma Noite em Miami..." (que ficou sem nada) ou "Uma Vida à Sua Frente" (onde Diana Warren, à 12.ª nomeação, continuará a ser a mulher mais nomeada sem nunca ganhar) ou "Festival Eurovisão da Canção: A História dos Fire Saga".
Ainda com seis nomeações, a noite também foi de sucesso para o “Som do Metal”, um filme que ganhou estatuetas para a Montagem e Som, vencendo filmes, principalmente na segunda categoria, com um orçamento muito superior.
Sem estar nomeado para Melhor Filme, "Ma Rainey: A Mãe do Blues" ganhou pela Caracterização e Guarda-Roupa, a segunda a ter como destinatária Ann Roth, que, aos 89 anos, bate o recorde de longevidade nas estatuetas competitivas.
Destaque ainda para "Tenet", o único "blockbuster" lançado por Hollywood durante a pandemia nos cinemas, que ficou com a estatueta para os Melhores Efeitos Visuais.
Melhor momento da noite foi Glenn Close a dançar "Da Butt"?
Momentos antes, o ator e cineasta Tyler Perry tinha feito um discurso poderoso a condenar o ódio ao receber o Prémio Humanitário Jean Hersholt que aqueceu a sala, mas ao conseguir tornar "espontâneo" o que era um momento perfeitamente "ensaiado" da cerimónia (diz a imprensa especializada), Glenn Close foi uma das vencedoras da noite... apesar de estar agora empatada com Peter O’Toole nos atores com mais nomeações sem nunca ganhar: oito vezes.
Tudo aconteceu num segmento intitulado “Questlove’s Oscars Trivia", onde o ator e comediante Lil Rel Howery perguntou a membros do público o nome das canções que Questlove começava a tocar e como se tinham portado nos Óscares.
Para "surpresa" de Howery, Glenn Close não só foi capaz de identificar "Da Butt", como prestar várias informações "técnicas", incluindo a de que a canção não tinha sido nomeada e qual a sua opinião sobre isso (com o áudio a cortar os palavrões).
Foi então pedido à atriz para mostrar os seus dotes de dançarina de "Da Butt" e isso finalmente deu uma injeção de vitalidade à cerimónia.
"Foi magnífico e desconfortável ao mesmo tempo", reagiu Howery antes de anunciar "Pessoal, estes são os Óscares mais negros de todos os tempos".
Melhor Filme Internacional celebra a vida, mas ficou marcado pela tragédia
“Mais Uma Rodada” foi o esperado vencedor do Óscar de Melhor Filme Internacional, uma quarta estatueta para a Dinamarca que coloca o país ao lado de Espanha e Japão, e apenas atrás dos campeões Itália (14) e França (12).
O filme acompanha as consequências do pacto de quatro professores dinamarqueses cansados do mundo que passam os dias embriagados numa "experiência" pouco científica, mas o realizador Thomas Vinterberg fez um dos discursos mais emotivos da noite ao dedicar o Óscar à sua filha, que morreu num acidente aos 19 anos quando um condutor distraído foi contra o carro que era conduzido pela sua mãe.
"Queríamos fazer um filme que celebra a vida. Quatro dias na rodagem, o impossível aconteceu. Um acidente na auto-estrada levou embora a minha filha. Alguém a olhar para um telemóvel. Sinto saudades dela e amo-a. Acabámos por fazer este filme para ela como um monumento. Ida, é um milagre que acabou de acontecer e fazes parte desse milagre. Talvez estejas a mexer os cordelinhos em algum lugar, mas este é para ti", explicou.
O realizador acrescentou que a filha estava em África quando leu o argumento pela primeira vez e estava tão entusiasmado que queria fazer parte dele. Por isso, o plano passava por fazer o filme no seu liceu e ela e os seus amigos estarem em alguns dos papéis secundários como alunos.
Nas animações e documentários, tudo como se antecipava
Nas categorias de animação não houve grandes surpresas: "Soul - Uma Aventura com Alma" valeu a 11ª vitória à Pixar e a terceira ao realizador Pete Docter na categoria de Longa-Metragem de Animação, enquanto o tocante “If Anything Happens I Love You” arrebatou o troféu de Melhor Curta de Animação, com uma história sensível sobre o luto de dois pais por uma filha no contexto dos tiroteios nas escolas nos EUA.
“Soul” conquistou ainda o galardão para Melhor Banda Sonora para o trio Trent Reznor, Atticus Ross e Jon Batiste, os dois primeiros também nomeados este ano pela partitura de “Mank” e que já tinham vencido a estatueta há uma década por “A Rede Social”.
Como também se antecipava, “A Sabedoria do Polvo”, produzido pela Netflix, conquistou o Óscar de Melhor Documentário de Longa-Metragem.
Realizado por Pippa Ehrlich e James Reed, o filme acompanha um ano na vida de Craig Foster, documentando de forma sensível a relação de imensa proximidade que este vai criando com um polvo durante os seus mergulhos na África do Sul.
No Documentário de Curta-Metragem, o Óscar foi atribuído a “Colette”, o primeiro filme produzido por um estúdio de videojogos (o Respawn Entertainment) a ser nomeado aos Óscares, e a vencer: realizada por Anthony Giacchino, a curta gira em redor de Colette Marin-Catherine, que integrou a Resistência Francesa durante a ocupação nazi, e retrata a sua primeira viagem à Alemanha em 74 anos.
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