Baseado num texto de Mia Couto e José Eduardo Agualusa, “Nayola” cruza em duas linhas temporais distintas as histórias de três gerações de mulheres angolanas e a forma como a guerra civil que varreu o país as atravessou. A ação evolui entre 1995, com Nayola em busca do marido desaparecido em pleno conflito armado, e 2011, com uma jovem rapper ativista nas ruas de Luanda e a avó que acolhe em casa uma misteriosa figura mascarada.

Em estilos gráficos distintos, a história é assombrada pelos efeitos diretos e indiretos da guerra na vida das três mulheres e na forma como o passado e o presente marcam a ferro tudo o que se pode esperar do futuro. O realizador é José Miguel Ribeiro, autor de filmes tão elogiados e premiados nacional e internacionalmente como “A Suspeita” (vencedor do Cartoon D’Or em 2000, então a maior distinção da animação europeia), “Viagem a Cabo Verde” ou “Estilhaços”, que aqui se estreia na longa-metragem, numa co-produção internacional da portuguesa Praça Filmes com a belga S.O.I.L., a holandesa Il Luster e a francesa JPL Films.

Nove anos depois do arranque do projeto, com estreia na competição oficial do maior festival de animação do mundo, em Annecy, “Nayola” chega agora às salas portuguesas, no ano em que a animação nacional está sob todos os holofotes, com a nomeação de “Ice Merchants” aos Óscares e a estreia de outra longa nacional de animação “Os Demónios do Meu Avô” já a 4 de maio, além da co-produção minoritária “Interdito a Cães e Italianos”, em sala desde finais de março.

"Parti a pensar que ia fazer uma média-metragem e acabo a fazer uma longa porque me apercebo que não ia funcionar de outra maneira"

O que é que surgiu primeiro, a vontade fazer uma longa-metragem de animação ou a ideia de base do filme, que não podia ser concretizada no formato habitual de curta-metragem?

José Miguel Ribeiro: Foi um processo evolutivo, que começou também por um raciocínio prático. Eu olhava para as longas-metragens dos outros realizadores e produtores, que levavam cerca de cinco anos a fazer, e pensava: “bom, cinco anos foi o que levei a fazer “A Suspeita”, que tem 26 minutos. Às tantas não é assim uma grande diferença, é só a quantidade de trabalho. Mas essa pode não ser exatamente a mesma porque nesse filme éramos só dois animadores, um diretor de fotografia, um assistente… e numa longa seríamos uma equipa maior”. Por isso, em teoria até podia levar o mesmo tempo a fazer uma longa que uma curta, mesmo que me assustasse a gestão de tantas pessoas a fazer um filme.

Mas, na verdade, o que faz com que entrasse nesta longa foi um workshop que fui dar a Luanda, a convite do [realizador e produtor] Jorge António. Ficámos amigos e ele um dia passou-me um texto do Mia Couto e do José Eduardo Agualusa, chamado "A Caixa Preta”. Li aquilo, achei muito bonito e muito forte. O texto falava de toda a parcela mais presente do filme, daquela noite naquela casa, com a avó, a neta e o homem mascarado a entrar pela janela. Aquilo dava uma perspetiva do efeito da guerra numa família, com um olhar no feminino e pelos angolanos. Como português, o que conheço mais é a guerra colonial, e sempre senti que me faltava ver uma parte da história... a da guerra do ponto de vista dos angolanos, guineenses, moçambicanos, enfim… E também perceber como é que foi a guerra civil que se seguiu, como é que ela se sustentou no tempo e o efeito que teve naquelas famílias todas, em que se perderam pessoas e se desfizeram laços, enfim, um sofrimento enorme naquele país, que durou 27 anos.

E achei isso interessante, o desafio de sair da minha posição e de ter de me colocar noutra. Mas, nessa altura, não contava fazer uma longa-metragem 100% de animação. O Jorge propôs-me rodar ele a parte do presente, toda em imagem real, e eu só fazer a parcela do passado, da viagem da Nayola, essa sim em animação. E foi assim que me convenci a avançar para o projeto. Pensei: “se for 80 minutos, faço 40 minutos. Ora, “A Suspeita” tinha 25 minutos… portanto é mais 15 minutos. E acho que isso consigo fazer, com uma equipa pequena. Não preciso fazer numa escala tão grande…"

José Miguel Ribeiro créditos: Câmara Municipal de Setúbal

Em teoria, em termos de produção, seria muito mais simples…

Em teoria seria mais simples, mas depois em termos de objeto artístico já não tinha tanta certeza.

Vendo o filme final, nem se percebe como poderia funcionar…

Sim, nós fizemos alguns testes, até chegámos a fazer um trailer, e foi isso que nos levou a decidir fazer tudo em animação. Comecei a sentir que o filme, na história que o [argumentista] Virgílio Almeida tinha adaptado, se estava a desenvolver muito nos saltos temporais. entre passado e presente. E tinha receio de que ao fazer isso com dois estilos visuais cinematográficos tão diferentes, o resultado fossem dois filmes separados. Acabamos por achar que seria melhor fazer tudo em animação, mantendo alguma variação de estilo para ajudar o espectador a perceber se estava no presente ou no passado, sem que as pessoas saíssem do filme.

Claro que fazer o filme todo em animação obrigou depois a aumentar o seu tempo de produção e foi essa a razão que nos conduziu depois a aumentar o tempo de produção e o orçamento, porque um filme da imagem real e animação custaria um milhão e meio de euros, e um filme todo em animação subiu o valor para um pouco mais do dobro, para três milhões e 200 mil euros.

Foi um pouco esta a história: portanto parti a pensar que ia fazer uma média-metragem e acabo a fazer uma longa porque me apercebo que não ia funcionar de outra maneira.

"Às vezes, trabalhamos horas demais, esquecemo-nos de nós e da família, e quando acabamos um filme estamos um bocadinho perdidos. Por isso, também é sempre muito difícil delinearmos um percurso muito objetivo, a realidade mete-se pelo caminho"

Aqui entra em cena um dado curioso: enquanto na longa-metragem de imagem real o financiamento do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) abarca geralmente uma parcela muito grande do custo total do projeto, na longa-metragem de animação será apenas uma parte muito pequena.

Sim, no nosso caso o valor do ICA foi mesmo menos de um terço do valor total, mas de facto tínhamos de trabalhar com equipas de quatro países, de mais de cem pessoas, e quisemos fazer o filme da melhor maneira possível. Nas coproduções cada país entra com um valor e depois utiliza esse dinheiro dentro do seu território. Geralmente dividimos o filme em segmentos e atribuímos cada segmento a um dos países. Não queria fazer um filme todo animado num país, intercalado noutro e pintado ainda noutro, porque acho que as pessoas precisam ter um envolvimento e sentirem-se parte do crescimento de um projeto, e não se limitarem a ser parcelas de uma linha de montagem. Então, achei que era mais interessante manter equipas pequenas em cada país e dar-lhes segmentos completos, que passavam por fazer o layout, a animação, a intercalação, o “cleaning” e a pintura em cada um dos países, com um resultado final para cada uma dessas equipas próximo da relação que se tem com uma curta-metragem.

Provavelmente sem querer, os teus últimos filmes parecem ter-te conduzido ao “Nayola”: o “Viagem a Cabo Verde” na relação com África e o “Estilhaços” na abordagem da guerra...

Sim, é bem verdade, às vezes os caminhos são feitos sem percebermos bem que os fazemos, e esse percurso foi completamente acidental. Por exemplo, fui para Cabo Verde para me curar de um trabalho intenso que foi o de fazer “A Suspeita”, que me deixou muito exausto e a precisar de me reencontrar. E quando iniciei o estúdio Sardinha Lata com o Nuno Beato, precisávamos de dois projeto para arrancar, ele fez o “Mi Vida en Tus Manos” e eu fiz o “Viagem a Cabo Verde”, a partir dos meus cadernos dessa viagem. Portanto, não foi um filme programado, não fui lá a pensar nisso. Estas áreas são muito intensas, as pessoas que trabalham aqui são muito obsessivas, e têm que ser um bocadinho senão não se acabam os filmes. Às vezes, trabalhamos horas demais, esquecemo-nos de nós e da família, e quando acabamos um filme estamos um bocadinho perdidos. Por isso, também é sempre muito difícil delinearmos um percurso muito objetivo, a realidade mete-se pelo caminho…

Algumas pessoas com quem falamos disseram "O filme é angolano, vai fazer parte da história de Angola. É um filme que nos pertence, que faz parte de nós”

Começaste o projeto há cerca de nove anos e o mundo entretanto mudou muito, com a questão da legitimidade dos criadores em abordar determinados temas a estar cada vez mais em cima da mesa. Colocaste-te ao longo do percurso esse tipo de questões, de ser um homem a fazer um filme sobre mulheres, de ser um português a fazer um filme sobre angolanos…?

Claro, isso foi completamente um tema. A meio do filme, apercebo-me disso, da questão da legitimidade, que quando iniciei o projeto começava a ser falada mas que ainda não era muito central. E que depois passou a ser, até no mundo artístico, nos festivais de cinema, com as questões das quotas, das minorias, da representação de todas as diversidades que existem em cada país. E a questão também de quase todos os filmes que existem sobre a África serem feitos por não-africanos. Já vão existindo bastantes filmes feitos por mulheres, principalmente em animação, mas menos filmes feitos por africanos que vivem em África.

Sou completamente a favor da questão do equilíbrio social e da representatividade de todas as diferenças na sociedade, portanto lutarei para que todas as mulheres tenham os mesmos direitos e o acesso às mesmas oportunidades que têm os homens, até porque tenho três filhas, e sinto que elas felizmente já nasceram num mundo com essa consciência. No meu caso… bom, primeiro, nunca tinha feito nenhuma adaptação, sempre fiz filmes a partir das minhas experiências pessoais, por isso a questão da legitimidade nunca se colocou nos meus filmes, porque eram experiências pessoais e falava delas naturalmente.

TRAILER.

Quando me meto neste projeto, ele vem do Mia Couto e do Agualusa e por isso senti-me, de certa maneira, legitimado a pegar na história deles e a arrancar. Depois o Virgílio Almeida tem grande parte da família angolana, veio para Portugal muito pequeno e manteve sempre uma relação próxima com Angola. E tínhamos o Jorge António, que vive em Angola há mais de 20 anos, portanto, senti-me bem rodeado na questão da Angola por pessoas que me podiam garantir que não me afastava daquilo que poderia ser uma visão dos angolanos. E isso para mim foi sempre central em todo o filme. O que me coube foi não trair aquilo que é a realidade angolana e a visão das mulheres, fazer uma imensa pesquisa, ler muitos livros, e rodear-me também por mulheres: A Catarina Gil foi assistente de realização, a Johanna Bessiere, fez uma parte importante da direção de toda a equipa da animação toda e do 'storyboard' da parte 3D, a Gaëlle Diot, que já estava muito interessada em questões africanas, fez os cenários todos da casa… elas foram mulheres importantíssimas no projeto.

Gosto sempre de trabalhar com criadores, porque somos todos criadores num projeto de animação, cada um na sua área, e o mais interessante é exatamente a troca, até porque nós estamos muito tempo a trabalhar num projeto. Um filme é a soma de todas essas partes e a soma de muitas contribuições diferentes de todas as pessoas. E nesse sentido, nunca me senti um homem a contar a história das mulheres, porque na verdade não foi um homem que fez este filme.

O “Nayola” foi foi feito por alguns homens e algumas mulheres, e foi feito também por angolanos. Porque os atores que dão as vozes são todos angolanos. Não quis recorrer a atores angolanos a viver em Portugal, quis ir filmar a Luanda com atores de lá, no espaço que costumam habitar, com os seus hábitos do dia a dia… E eles trouxeram as histórias deles para o filme, adaptamos os diálogos às vozes e expressões deles… Trabalhei com uma rapper, que é a Medusa, que entrou no filme não só com a voz dela mas com toda a sua história pessoal, com detalhes que foram fundamentais na construção e na riqueza do filme… Todo este processo foi muito importante, até porque somos muito eurocentristas, vemos todos o mundo através do nosso umbigo, que é aqui o da Europa. Mas quando chegamos à África e olhamos para o mundo, não é exatamente o mesmo mundo que vemos aqui a partir daqui.

Nesse sentido, como tem sido a receção nacional e internacional?

Tem sido muito boa. A primeira foi no Festival de Annecy, e foi muito forte, tivemos uma sala a aplaudir o filme durante o genérico todo, são quatro minutos e meio de genérico e as palmas nunca pararam. Depois passámos o filme na Bélgica em duas sessões, esgotadas, com 700 pessoas na sala. E também uma grande reação, uma grande emoção. As pessoas saíam todas tocadas com o filme, a quererem falar comigo, algumas a chorar. E depois fomos a Angola mostrar o filme, e aí tinha mais receio, claro, até pelas questões da guerra civil, que é muito recente, associada a muito sofrimento e a muitas divisões. E tinha medo que este filme pudesse abrir algumas feridas... E curiosamente a reação da sala foi muito mais intensa que na Europa, todas as cenas pareciam ser sentidas com uma intensidade superior. Algumas pessoas com quem falamos disseram "O filme é angolano, vai fazer parte da história de Angola. É um filme que nos pertence, que faz parte de nós”. E também nos elogiaram muito por ser um filme que olha a guerra não só pela perspetiva das mulheres mas também das pessoas que sofriam em casa, e de quem nunca se fala. Em Portugal, a receção no Cinanima e na Monstra também foi muito boa, e é muito recompensadora a sensação de termos trabalhado nove anos num filme e sentirmos que chegou às pessoas e as comoveu.

"Neste momento, as séries são talvez o patinho feio da animação em Portugal"

Estamos a celebrar os 100 anos da animação portuguesa, tivemos uma curta de animação nomeada aos Óscares, presenças nos principais festivais internacionais como Cannes ou Sundance, temos pela primeira vez longas-metragens de animação portuguesa a estrear em salas… Que leitura fazes deste momento que estamos agora a viver?

Acho que este é mais um momento importante na animação portuguesa. Já passámos por alguns, por exemplo quando a Regina Pessoa ganhou o Cristal de Annecy [com “História Trágica com Final Feliz”, em 2006] ou quando “A Suspeita” ganhou o Cartoon D’Or [no ano 2000], momentos em que tivemos muito destaque mediático na imprensa, e em que também se falou na possibilidade de irmos aos Óscares, que depois não se chegou a concretizar. Claro que uma coisa é o nosso trabalho e outra é a visibilidade dele. E nós estamos outra vez num momento de visibilidade, talvez como nunca. Graças ao “Ice Merchants”, do João Gonzalez, que devido aos Óscares teve uma visibilidade internacional gigantesca, que se reflete em Portugal. E tanto o “Nayola” como “Os Demónios do Meu Avô”, do Nuno Beato, que também tem estreia para breve [4 de maio], são filmes nos quais estamos a trabalhar há muito anos mas que só agora têm visibilidade, antes pouco se falava deles. E estamos ambos a ser selecionados para muitos festivais internacionais e a ganhar prémios: não deixa de ser um sinal de qualidade, estarmos a competir de uma forma muito igual com o que de melhor se faz no mundo. E isso é um mérito do trabalho desenvolvido ao longo de todos os anos, da qualidade das equipas, dos realizadores, dos produtores. Espero que este momento alto possa conseguir também chegar às pessoas. E que as duas longas portuguesas que agora que vão sair tenham público, que os portugueses vejam e que isso também ajude a provocar algum efeito naquilo que ainda falta resolver da animação portuguesa.

Para mim, neste momento, diria que o mais urgente serão as séries. Não temos, de facto uma indústria de séries de animação, como tem a Espanha ou a França. Nem é que defenda a indústria, mas acho que é uma área que tem imenso potencial, temos muita gente cheia de talento a sair das escolas e que seria bom manter em Portugal. Neste momento, o prestígio das curtas-metragens de animação de autor portuguesas é gigantesco, nas longas também provámos que somos bons, mesmo a nível internacional, e as séries seriam agora essenciais para a criação de um tecido de produção português que possa começar a ser também exportado com qualidade. Mas temos de ter televisões nisto, não há uma televisão a investir em animação em Portugal. Se quisermos fazer séries com, enfim, cerca de 26 episódios de 20 e tal minutos, para poder ter um impacto real, isso pode custar entre os cinco e os oito milhões de euros. Em coprodução, podemos contribuir para uma parte significativa disso, diria que na ordem dos dois milhões de euros, e isso neste momento é impossível. O dinheiro que o ICA dá não chega e os valores da televisão são quase insignificantes nestes números. Acho que esse é o grande salto que nos falta dar, as séries são talvez o patinho feio da animação portuguesa neste momento.