O cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard, pai da "Nouvelle Vague" (Nova Vaga), que morreu nesta terça-feira aos 91 anos, recorreu ao suicídio assistido, confirmou à France-Presse o conselheiro jurídico e fiscal da sua família.
"Jean-Luc Godard recorreu à assistência jurídica na Suíça por morte voluntária, em consequência de 'múltiplas patologias incapacitantes' de acordo com os termos do relatório médico", explicou Patrick Jeanneret, confirmando uma informação publicada pelo jornal francês Libération.
O anúncio da morte deveria ser feito dentro de dois dias, mas o conselheiro admitiu que foi necessário redigir um comunicado à pressa após a informação chegar à imprensa.
"O cineasta Jean-Luc Godard faleceu a 13 de setembro de 2022, anunciam a sua esposa Anne-Marie Miéville e os seus produtores. Não haverá nenhuma cerimónia. Jean-Luc Godard faleceu de forma tranquila na sua residência, ao lado dos seus entes queridos. Será cremado", afirmava o primeiro comunicado.
"A cremação acontecerá até dentro de dois dias, talvez na quarta-feira", acrescentou Patrick Jeanneret à France-Presse, antes de informar que as "cinzas permanecerão com a sua esposa".
Godard foi um dos realizadores mais incontornáveis de toda a história do cinema, fundador de uma estética e de uma linguagem cujos ecos ainda hoje se fazem sentir. Além da sua importância enquanto crítico de cinema na revista Cahiers du Cinéma, foi o nome mais emblemático da Nouvelle Vague com o amigo François Truffaut, que corporizou em "O Acossado" (1960), um dos filmes-chave do cinema moderno francês e uma das obras mais influentes de sempre.
A partir daí, nunca deixou de inovar, numa carreira fulgurante e muito individualizada, e muito prolífica, fazendo nos anos seguintes filmes como "O Desprezo" e "Pedro, o Louco".
"JLG", como também era conhecido na França, recusava homenagens, que foram muitas em sua longa carreira: nove dos seus filmes estiveram em seleções oficiais do Festival de Cannes e seis nas de Veneza. Venceu o Urso de Prata de Melhor Realização no Festival de Berlim com "O Acossado" em 1960, uma Palma de Ouro especial no Festival de Cinema de Cannes de 2018 pelo documentário "O Livro de Imagem" e dois Césares Honorários em 1987 e 1998, além de um Óscar Honorário em 2010, que recusou ir receber pessoalmente.
Foi autor de frases imortais, como "o cinema não escapa à passagem do tempo. O cinema é a passagem do tempo" e cenas fascinantes, como Brigitte Bardot a conversar nua na cama. Ou Jean-Paul Belmondo a caminhar com Jean Seberg nos Campos Elísios.
"Foi como uma aparição no cinema francês. Logo se tornou um mestre. Jean-Luc Godard, o mais iconoclasta dos cineastas da Nouvelle Vague, havia inventado uma arte decididamente moderna, intensamente livre. Perdemos um tesouro nacional, um olhar genial", reagiu no Twitter o presidente francês, Emmanuel Macron.
Nascido a 3 de Dezembro de 1930, Godard passou a infância e juventude na Suíça e depois estudou etnologia na Sorbonne.
A partir de 1952 colaborou na revista Cahiers du Cinéma e, depois de vários curta-metragens, fez em 1959 a sua primeira longa_metragem, "À bout de souffle" ("O Acossado), já com a ideia clara de acabar com o classicismo que mais uma vez inundara o cinema francês após a Segunda Guerra Mundial: adotou inovações narrativas e filmou com a câmara na mão, rompendo uma regra até então inviolável. Esse filme foi um dos primeiros da "Nouvelle Vague" ("Nova Vaga"), movimento que se propunha renovar a cinematografia francesa e revalorizava a realização, reabilitando o filme dito de autor.
Truffaut assegurou que "Godard é o maior cineasta. Ele não é o único que filma como respira, mas é quem respira melhor".
Os filmes seguintes confirmaram Godard como um dos cineastas mais inventivos da Nova Vaga: "Vivre sa vie" (1962, "Viver a Vida"), "Bande à part" (1964, "Bando à Parte", "Alphaville" (1965), "Pierrot le fou" (1965, "Pedro, o Louco"), "Made in U.S.A" (1966), "Masculin féminin" (1966, "Masculino Feminino"), "Deux ou trois choses que je sais d'elle" (1966, "Duas ou Três Coisas que eu Sei Dela"), "La Chinoise" (1967, "O Maoísta") e "Week-end" (1968, "Fim-de-Semana").
Nesta fase, o seu cinema caracterizava-se pela mobilidade da câmara, pelos demorados planos-sequências, pela montagem descontínua, pela improvisação e pela tentativa de carregar cada imagem com valores e informações contraditórios. Esta reinvenção da uma linguagem do cinema teve muita influência, logo nos anos 1960 em cineastas franceses como Jean Eustache, Romain Goupil e Philippe Garrel, e mais tarde em norte-americanos como Martin Scorsese, George Lucas, Francis Ford Coppola, Brian De Palma, David Lynch, Pedro Almodóvar, Quentin Tarantino ou Gus van Sant.
"O tema do filme é a sua forma"
Depois de quase uma década de glória, Godard rompeu claramente com a indústria cinematográfica em maio de 1968 e fez a sua pequena revolução e causa escândalo nas escadarias do Festival de Cannes para chamar a atenção para o movimento estudantil que acontecia em paralelo.
Criou a seguir com Jean-Pierre Goran o grupo de cinema Dziga Vertov — assim chamado em homenagem a um cineasta russo de vanguarda — e virou-se para o cinema político. Uma mudança radical que consolida a separação entre 'godardianos' e 'não-godardianos', esta é uma fase em que praticamente "desaparece" como realizador e os filmes passam a ser assinados coletivamente, em que passa a ser militante e o seu cinema está ao serviço de uma causa, desde as curtas de três minutos que são panfletos de propaganda a longas como "Pravda" (1970), que abordava a invasão soviética da então Checoslováquia; "Le vent d'Est" (1969, "Os Ventos de Este"), com argumento do líder estudantil Daniel Cohn-Bendit, desmistificava o western; e "Jusqu'à la victoire" (1976), com outros realizadores, enfatizava a guerrilha palestiniana; e "Ici et ailleurs" (1976), que provou escândalo ao comparar os judeus com os nazis.
O seu ativismo político deixou um pesado legado de mal-entendidos, como a sua adesão à Revolução Cultural Chinesa, que causou milhões de mortes na década de 1960. Não faltam admiradores que consideram que o seu período mais fulgurante é até "Tout Va Bien" (1972, "Tudo Vai Bem"), com Yves Montand e Jane Fonda.
Nos anos 1980, voltou-se novamente para o cinema mais clássico, com obras mais descoladas da atualidade e entra noutro período fortíssimo, que inclui o notável "Sauve qui peut (la vie)" (1980, "Salve-se Quem Puder") e onde procurou inovar a estética cinematográfica com "Passion" (1982, "Paixão"), reflexão sobre a pintura. Os filmes seguintes, como "Prénom: Carmen" (1983 "Nome: Carmen") e "Je Vous Salue, Marie" (1984, "Eu Vos Saúdo Maria"), provocaram polémica, com o segundo, irreverente em relação aos valores cristãos e onda a Virgem aparece nua no ecrã, a ser proibido em vários países e a provocar manifestações noutros, incluindo Portugal.
Durante 10 anos (1988-1998), criou uma grande série documental de oito episódios intitulada "Histoire(s) de cinéma", um grande fresco filosófico e estético sobre a Sétima Arte.
O seu cinema nunca deixou de ser moderno: entre curtas-metragens e outros trabalhos, dirigiu ainda títulos como “Detéctive” (1985, "Máfia em Paris"), "Nouvelle Vague" (1990, "Nova Vaga"); "For Ever Mozart" (1996, "Para sempre Mozart"), "Éloge de l'amour" (2001, "Elogio do Amor"), este um célebre fracasso; "Notre musique" (2004, "A Nossa Música"); e "Film Socialisme" (2010, "Filme Socialismo").
Por esta altura, já era muito crítico dos atuais rumos do cinema, mas os anos 2010 foram mais bem sucedidos em termos de sucesso, com "Adieu au langage" (2014, "Adeus à Linguagem"), pelo qual recebeu o Prémio do Júri em Cannes em 2014; e "Le livre d'image" (2018, "O Livro da Imagem"), que lhe valeu uma Palma de Ouro especial em 2018, onde causou sensação com uma invulgar conferência de imprensa à distância, via FaceTime e meio despenteado, de cigarro e os óculos na ponta do nariz, de voz cavernosa, que deixou os jornalistas entre o surpreso e o divertido.
De facto, o realizador, que adquiriu a nacionalidade suíça aos 21 anos, passou os últimos 40 anos recolhido na cidade de Rolle, de onde raramente saiu e esporadicamente lançava filmes de autor para delícia dos seus fãs.
Em abril de 2019, fez uma raríssima aparição pública para receber um prémio na Cinemateca Suíça, onde lamentou a perda do cinema por causa do streaming, comparando-a com a transição do cinema mudo para o sonoro.
“Hoje, outra perda, na minha opinião, será o fim dos DVDs de uma certa forma. Com a nova, como é chamada, Netflix... as pessoas usam-na para ver um filme da forma que querem, e já não vão realmente às salas de cinema", lamentou.
Em abril de 2020, voltou a fazer uma aparição para dar uma "masterclass" sobre "imagens nos tempos do coronavírus". Por vezes a fumar charuto, falou da sua casa via FaceTime com Lionel Baier, responsável pelo departamento de cinema da Escola Cantonal de Arte de Lausanne (ECAL) e também co-fundador da produtora Bande à Part Films (o título do seu filme de 1964) durante quase hora e meia sobre imagem, linguagem, Sétima Arte e a sua filmografia, de estar fora das redes sociais, das suas ocasionais falhas de memória, e ainda de literatura, pintura, ciência, medicina e comunicação.
Godard foi casado com a atriz Anna Karina de 1961 a 1965, que não entrou em "O Acossado" por se recusar a despir, mas aceitou um papel em "Une femme est une femme" (1961, "Uma Mulher é Uma Mulher"). Começou aí a relação, que se desgastou com um filho natimorto e as tensões com a família de Godard que não aceitava a atriz, que o abandonou.
A seguir, conheceu a atriz Anne Wiazemsky durante a produção do filme de Robert Bresson "Au hasard Balthazar" (1966, "Peregrinação Exemplar"), que a princípio recusou a relação, mas acabou por ceder e casaram no ano a seguir, separando-se em 1970. Para o cinema, ficou a colaboração em "O Maoísta".
Ainda em 1970, conheceu a fotógrafa Anne-Marie Miéville, que trabalhou em vários dos seus filmes como realizadora, argumentista e editora. Nunca casaram, mas a relação manteve-se até à morte do realizador, que nunca teve filhos.
Numa ocasião, sugeriu o seu próprio epitáfio: "Jean-Luc Godard, ao contrário".
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