Manoel de Oliveira, que deixou filmes como
«Francisca» e
«Vale Abraão», morreu vítima de paragem cardíaca quando faltavam poucos minutos para o meio-dia esta quinta-feira, aos 106 anos.
Consoante as opiniões, foi o símbolo do melhor ou do pior no cinema português, o criador de filmes que conquistaram os festivais e a crítica internacional mas que não conseguiram seduzir os espectadores do próprio país. Marca de resistência às modas e às tendências estéticas e políticas, o cinema mundial não tem nada igual a Manoel de Oliveira.
Era o realizador português mais conhecido internacionalmente na história do cinema, e certamente o cineasta que conseguiu ter uma carreira mais profícua e celebrada após os 75 anos, idade em que a maioria começa a retirar-se da profissão ou a perder a relevância. Apesar da saúda fragilizada, trabalhou até há cerca de duas semanas.
De facto, era último realizador cuja carreira começou ainda no cinema mudo com
«Douro, Faina Fluvial» (1931) e chegou à atualidade com
«O Gebo e a Sombra» (2012). A despedida do cinema deu-se com a curta-metragem
«O Velho do Restelo», que estreou em Portugal a 11 de dezembro, no dia do seu aniversário.
O cineasta deixa ainda aquele que desejou que fosse o seu filme póstumo: «Visita ou Memória e Confissões», de caráter autobiográfico, filmado em 1982 e que, por sua vontade explícita, só poderia ser mostrado publicamente após a sua morte. O realizador tinha então 74 anos, tivera até aí uma produção muito intervalada e todos pensavam que a sua carreira não demoraria muito a terminar.
Manoel Cândido Pinto de Oliveira nasceu no dia 11 de dezembro em 1908, embora o registo fixe a data de nascimento no dia seguinte, no seio de uma família da burguesia industrial do Porto, 13 anos após o nascimento do cinema.
O primeiro contacto com a Sétima Arte foi como ator, quando aos 19 anos fez figuração no filme «Fátima Milagrosa», de Rino Lupo (1928).
A paixão pelo cinema rivalizava com o gosto pelo atletismo (foi campeão de salto à vara) e pelo automobilismo. Aliás, foi mesmo na década de 30 um nome razoavelmente popular como piloto, tendo vencido, por exemplo, o Circuito Internacional do Estoril em 1937 num Ford V8. Foi essa celebridade que lhe valeu a contratação para o papel de Carlos, o amigo de
Vasco Santana no incontornável
«A Canção de Lisboa» (1933), já que se considerava que ele poderia atrair ao filme espectadores do norte do país.
«Douro, Faina Fluvial», uma curta-metragem documental sobre a vida nas margens do rio Douro, foi o primeiro filme que Manoel de Oliveira rodou, então com 23 anos, com uma câmara oferecida pelo pai.
A estreia desse filme aconteceu a 19 de setembro de 1931, no mesmo dia em que morreu Aurélio da Paz dos Reis, considerado o pai do cinema português.
Hoje, a película é largamente elogiada, quase unanimemente considerada uma obra-prima, mas na altura foi mal recebida pelo público. Reza a história que o filme foi recebido com uma pateada tão monumental que um estrangeiro de visita a Lisboa terá perguntado se era assim que se aplaudia no nosso país.
O mesmo destino foi reservado a
«Aniki Bobó», o seu primeiro filme de ficção, estreado em 1942, e o único nos 21 anos seguintes, igualmente considerado agora uma das maiores obras do cinema português.
Na verdade, a rodagem em cenários reais e não em estúdio, com atores não profissionais e com histórias urbanas passadas entre as classes mais desvalidas, antecipavam as marcas do neo-realismo.
A falta de apoios financeiros levou-o a deixar o cinema até 1956, quando estreou a curta-metragem «O Pintor e a Cidade», o seu primeiro filme a cores.
As conquistas e as polémicas
A primeira grande conquista junto do público ocorreu na década de 1960 depois de
«O Acto da Primavera», em 1962, ano em que foi detido pela PIDE, numa sessão pública de apresentação do filme, no Porto.
Foi também com «O Acto da Primavera» que Oliveira recebeu o Grande Prémio do Festival de Cinema de Siena, em Itália, em 1964. Um ano depois a Cinemateca Francesa rendeu-lhe uma homenagem com uma retrospetiva.
Nos anos 1970 a sua carreira começou a acelerar em termos de produtividade e a ascender no que diz respeito a receção internacional: é a época da sua incontornável «tetralogia dos amores frustrados», com
«O Passado e o Presente» (1971),
«Benilde ou a Virgem Mãe» (1975),
«Amor de Perdição» (1978) e «Francisca» (1981).
Este último foi uma adaptação do romance «Fanny Owen» feita pela escritora Agustina Bessa Luís e marcou o início, de acordo com esta, de uma «colaboração feliz» marcada pela amizade mas igualmente muitos conflitos «com muita cortesia», concordaram ambos, ao longo de nove filmes e uma peça de teatro encenada em Itália em 1987.
A origem do chavão dos «filmes lentos e intermináveis» nasceu com a imensa polémica gerada pela transmissão televisiva na RTP em 1978 de «Amor de Perdição», colando-lhe uma imagem de que ele nunca mais se conseguiu livrar: a de que os seus filmes são sempre longuíssimos e absolutamente monótonos.
Se a segunda classificação variará consoante o grau de sintonia do espectador com a narrativa do realizador, a primeira é absolutamente injusta, uma vez que o realizador raramente faz filmes com mais de 90 minutos. «Amor de Perdição» foi filmado em simultâneo como filme e série de televisão e o primeiro contacto que todos tiveram com ele foi precisamente através do pequeno ecrã, em que as virtudes do filme eram abafadas por uma exibição com a formatação errada e ainda a preto e branco.
Só o sucesso no estrangeiro e a intensa defesa da sua obra por parte de
João Bénard da Costa, que se tornou presença recorrente enquanto ator na obra do mestre portuense, o reabilitaram no nosso país: em 1985, com 77 anos, no ano de
«O Sapato de Cetim», recebeu o Leão de Ouro do Festival de Veneza, em Itália, e em 1989 foi condecorado pelo então Presidente da República, Mário Soares, com a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique.
Uma carreira que aumentou depois dos 80 anos
«Non, ou a Vã Glória de Mandar», uma visão sobre a identidade portuguesa a partir da revolução de 25 de Abril de 1974, abriu uma nova etapa na filmografia de Oliveira, que a partir de então acelerou a sua produção cinematográfica para um nível impensável décadas antes, que manteve até ao fim e que lhe permitiu estrear cerca de uma longa-metragem por ano.
Determinante foi a parceria com Paulo Branco, que arrancou com «Amor de Perdição», quando o segundo, ainda programador de uma sala de cinema em Paris, a Action Republique, projetou o filme em 1979 e o lançou na senda do sucesso internacional. Entre «Francisca» (81) e
«O Quinto Império - Ontem Como Hoje» (2004).
Branco produziu 20 longas-metragens de Oliveira, cerca de uma por ano, uma produtividade que ninguém imaginava para um cineasta que toda a vida encontrara entraves para filmar e num país com crónica dificuldade de produção continuada.
Entre os filmes desta fase produtiva estão
«A Divina Comédia» (1991),
«O Dia do Desespero» (1992), «Vale Abraão» (1993),
«O Convento» (1995), com Catherine Deneuve, John Malkovich, Leonor Silveira e Luís Miguel Cintra (um dos seus atores de sempre), o autobiográfico
«Viagem ao Princípio do Mundo» (1997), com Marcelo Mastroianni,
«A Carta» (1999), prémio do Júri em Cannes,
«Palavra e Utopia» (2000), sobre o Padre António Manuel Vieira,
«Um Filme Falado» (2003), uma viagem pelo Mediterrâneo e pela civilização ocidental, e
«Cristóvão Colombo - O Enigma» (2007).
Apesar da vertente intelectual e hermética muitas vezes associada à sua obra, o cineasta portuense afirmou diversas que o realizador que mais profundamente amou terá sido aquele que porventura mais sucesso comercial e popular teve em toda a história do cinema:
Charlie Chaplin.
Tendo visto na respetiva época toda a obra de Charlot, que arrancou em 1914, não terá sido por acaso que, na participação que faz em
«Viagem a Lisboa», de
Wim Wenders (1994), Oliveira imita precisamente o pequeno vagabundo.
Em 2007,
«Belle Toujours» recupera as duas personagens de «Belle de Jour» («A Bela de Dia», de Luis Buñuel (67) e em 2008 Oliveira festejou 100 anos de vida rodeado de técnicos e atores, enquanto filmava em Lisboa
«Singularidades de uma Rapariga Loura», que lhe valeu a Palma de Ouro de Carreira em Cannes, um prémio que se juntou ao Leão de Ouro de carreira que Veneza lhe entregara em 2004.
Em setembro de 2010 apresentou em Veneza a curta metragem «Painéis de São Vicente de Fora, visão poética», filme de 16 minutos. No mesmo ano, aquando do seu 102.º aniversário, regressou às salas uma versão restaurada e remasterizada de «Douro, Faina Fluvial».
«O Estranho Caso de Angélica», no qual recuperou um argumento com mais de 50 anos, foi também realizado em 2010 e foi considerado o segundo melhor filme de 2011 para a «Cahiers do Cinema», só precedido de
«Habemus Papam - Temos Papa», de
Nanni Moretti, e empatado com
«A Árvore da Vida», de
Terrence Malick.
«O Gebo e a Sombra», a partir de uma obra de Raul Brandão, e com um elenco de glórias que inclui Claudia Cardinale, Michael Lonsdale e Jeanne Moreau, foi, em 2012, a sua última longa-metragem.
O seu último trabalho foi a curta-metragem «O Velho do Restelo», a partir de textos de Luís de Camões, Teixeira de Pascoaes e Miguel de Cervantes.
Manoel de Oliveira era casado, desde 1940, com Maria Isabel Brandão Carvalhais, de quem teve quatro filhos.
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