No sábado, a espanhola Karla Sofía Gascón tornou-se a primeira atriz transgénero consagrada no Festival de Cinema de Cannes, como parte do quarteto feminino protagonista do musical em espanhol "Emilia Pérez", contemplado com o prémio coletivo de melhor interpretação feminina da mostra francesa.
Também integram o elenco as norte-americanas Zoe Saldaña e Selena Gomez, e a mexicana Adriana Paz.
Karla Sofía Gascón, de 52 anos, dá vida a um chefe do narcotráfico no México que quer mudar de sexo e de vida. Ela mesma faz o papel do líder do cartel e da mulher depois da transição. Com a dupla atuação, tornou-se a primeira intérprete trans a conquistar este prémio em Cannes.
Ao receber o prémio, representando as quatro atrizes, Gascón dedicou-o "a todas as pessoas transgénero, que sofrem todos os dias".
"Todos temos a oportunidade de mudar para melhor, de sermos pessoas melhores", acrescentou.
Ela nasceu Carlos Gascón em Alcobendas (arredores de Madrid), onde conheceu aos 19 anos aquela que seria a sua esposa, Marisa, numa discoteca. Com ela, teve uma filha, agora com 13 anos.
As três continuam próximas. A sua filha agora tem duas mães, uma medida que não foi fácil de conseguir, apesar de a Espanha, onde ela mudou de sexo e identidade em 2018 após um doloroso processo, ser um dos países mais liberais do mundo neste tema.
A atriz também dedicou o prémio às duas, "que aguentam as minhas loucuras todos os dias".
"Tive uma vida um pouco estranha. E restavam coisinhas por fazer. E uma delas é esta, estar aqui", explicou à France-Presse, após a estreia espetacular do filme "Emilia Pérez", do francês Jacques Audiard.
Gascón reconhece que a teimosia foi um meio de sobreviver, após descobrir que não se sentia confortável com o seu corpo "desde os quatro anos de idade".
E com esta mesma tenacidade conseguiu convencer Audiard, que lhe teria proposto interpretar apenas o papel de Emilia Pérez, para que lhe desse os dois papéis.
"Tive que convencê-lo, mandando vídeos e fotografias durante meses, até que uma manhã me ligou e disse, 'As duas personagens são suas, deixem-me em paz'", explicou entre risos.
"Um caminho difícil"
Durante três décadas, Carlos Gascón foi um galã de cabelos loiros e olhos claros que interpretou papéis em pequenos telefilmes e séries na Espanha.
Estudou interpretação na Escola de Cinematografia de Madrid (Ecam) e começou a carreira no final da década de 1980, com um papel em "El águila de fuego", teatro de revista na capital espanhola.
Participou em seguida na série para a TV "El súper", do canal Telecinco e em 2005, em "El pasado es mañana".
Em busca de novos horizontes profissionais, mudou-se para o México em 2009, onde interpretou um cigano na telenovela "Coração Selvagem".
Seguiram-se papéis de galã até ao seu grande sucesso, em 2013, como um dos protagonistas do filme "Nosotros los nobles", um dos filmes de maior sucesso nas bilheteiras do cinema mexicano.
Em 2018, para surpresa dos fãs, anunciou que mudara de identidade e que legalmente passou a se chamar Karla Sofía.
Durante este processo, escreveu "Karsia", um romance de tom confessional no qual o protagonista acaba por se suicidar.
"Foi um caminho muito difícil, muito complicado, sobretudo para minha mulher. Mas é maravilhoso o que está a acontecer", festeja.
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