De mitos ancestrais a problemas na área do trabalho, passando por um western com uma protagonista transgénero, quatro jovens cineastas brasileiros apresentaram as seus curta-metragens em Cannes na quarta-feira.

Realizados em dupla com um realizador de outro país, estes filmes integram o programa Factory da Quinzena dos Realizadores, uma mostra paralela do festival.

Os filmes foram rodados no Ceará, auspiciados pelo conhecido realizador Karim Aïnouz, natural de Fortaleza e habitué da Croisette.

É precisamente no porto gigantesco da capital cearense que decorre "Ponto Cego", que conta a história de Marta, uma engenheira encarregada das câmaras de segurança das instalações portuárias.

Luciana Vieira, originária desta região, e o cubano Marcel Beltrán são os realizadores deste curta-metragem que mostra um entorno onde as mulheres mal se podem queixar.

"É um desafio porque quando dirigimos juntos, temos que entrar em acordo sobre tudo, o filme, a estética, o elenco... Dirigir é tomar decisões, por isso tínhamos que estar muito unidos, conversar muito" para chegar a um terreno comum, explicou Luciana Vieira sobre a apresentação das curtas e o trabalho em dupla com outro cineasta.

"Ponto Cego"

Stella Carneiro, de Alagoas, e o português Ary Zara também partiram de posições diferentes, mas ligaram-se de seguida.

A sua curta, "A Vaqueira, a Dançarina e o Porco", é um western no qual uma "cow-girl" transgénero visita a sua namorada.

"Sinto que partilhamos os mesmos valores", disse Carneiro. "Para nós, era muito importante trazer desde o princípio como protagonistas personagens que normalmente não são vistas neste género tão tradicional".

Destaque para o norte e o nordeste

Em "Como Ler o Vento", Bernardo Ale Abinader, do Amazonas, e a franco-egípcia Sharon Hakim concentram-se na preservação dos conhecimentos ancestrais, ao contarem no seu filme como uma curandeira tradicional ensina as suas técnicas à discípula.

A quarto curta-metragem, "A Fera do Mangue", de Wara, com origens aimarás, e a israelita Noam Shimon, também aprofunda-se nas tradições para contar, em tom mitológico, a história de uma mulher que se alimenta da força dos manguezais [ecossistema costeiro] para enfrentar um agressor.

Os quatro filmes são protagonizados por mulheres e, embora pareça que os seus autores combinaram para convergir neste ponto, as jovens cineastas asseguram que se deram conta desta coincidência depois, quando os projetos já tinham sido lançados.

O denominador comum entre as obras é ter como ponto de partida a região do Ceará, tradicionalmente desfavorecida.

O último filme de Aïnouz, "Motel Destino", que disputou a Palma de Ouro no ano passado, já tinha sido rodado nesta região.

E a intenção é continuar a promovê-la no setor cinematográfico.

"Esta foi uma edição muito especial que fizemos a nível regional, pois foi um projeto apoiado pelo estado do Ceará. Eles tomaram esta decisão importante de destacar a região do nordeste e o norte do Brasil", disse Janaína Bernarder, produtora e uma das impulsionadoras do intercâmbio.

Esta edição do Factory, um programa que há dez anos convida um país (Finlândia, Chile, Dinamarca...) para fazer este tipo de colaboração, também se enquadra na comemoração dos 200 anos das relações diplomáticas entre Brasil e França.