"A Pedra Sonha Dar Flor”, de Rodrigo Areias, filme “duro, contemplativo e literário” que revisita a obra de Raul Brandão, com um olhar crítico sobre a pobreza, tem estreia comercial no dia 12 e algumas apresentações em cineconcerto.
A história que serve de base ao filme é “A morte do palhaço”, mas nela confluem várias obras de Raul Brandão, num conjunto cinematográfico pictórico, feito de luz, sombras e reflexos, filmado ao longo da ria de Aveiro, e musicado por Dada Garbeck, que interpretará a banda sonora ao vivo em cineconcerto.
A música acompanha a toada melancólica do filme, uma história de desesperança, passada num circo e numa casa de hóspedes da Vila Húmus, perdida nos confins da ria, onde se sobrevive num tempo sombrio, de pobreza e sofrimento, entre crimes e alucinações.
K. Maurício, escritor, mergulha na sua obra “A morte do palhaço”, tornando-se refém de sonhos impossíveis, enquanto Pita, um facilitador, manipula palavras e pessoas, divertindo-se num jogo cínico com quem o rodeia.
A ideia de fazer este filme vem de trás, acompanhando Rodrigo Areias há muitos anos, mas sem que a oportunidade tenha surgido senão agora, como contou à Lusa.
“Convidei o Eduardo Brito e posteriormente o Pedro Bastos para fazerem essa adaptação comigo e cada um deles também tem uma forma diferente de olhar para a obra de Raul Brandão e nesse sentido foi complementar, esta visão mais tripartida da escrita do argumento e da adaptação de múltiplas obras de Raul Brandão no mesmo argumento”, disse o realizador.
O fascínio de Rodrigo Areias por Raul Brandão e pela sua obra está diretamente ligado à origem vimaranense do realizador: “No fundo, Raul Brandão não deixa de ser um personagem que está bastante presente na nossa vida”.
Uma relação geográfica e afetiva, já que a Casa do Alto, na aldeia de Nespereira, perto de Guimarães, onde Raul Brandão viveu e escreveu grande parte da sua obra, é muito próxima da casa de família de Rodrigo Areias, onde ele cresceu aproximadamente 100 anos depois.
“Por isso, Raul Brandão é um autor que me acompanha há muitos anos e por quem eu tenho grande apreço pela obra, e de quem gosto bastante da obra, e fui aprofundando o meu conhecimento na obra de Raul Brandão ao longo dos anos”.
A ideia inicial era fazer um documentário, mas depois de mergulhar no espólio de Raul Brandão – manuscritos editados e não editados, desenhos, fotografias – abriram-se portas para a junção de várias obras e personagens neste filme.
Assim, “A pedra sonha dar flor” foi construído a partir dos textos de “A morte do palhaço e o mistério da árvore”, “O padre”, “Os operários”, “Os pobres”, “Húmus”, “O doido e a morte”, “O avejão”, “A farsa” e “Os pescadores”.
Mas “a linha narrativa é sobre ‘A morte do palhaço’, ou seja, é sobre a história de um conjunto de personagens que habitam o mesmo espaço físico, habitam uma pensão no centro de uma cidade ou nos arredores de uma cidade sobre as águas da ria de Aveiro”.
“Na verdade, filmámos maioritariamente em Ovar e também em Aveiro e, portanto, a paisagem também acaba por ter uma parte fundamental neste filme, o local onde filmamos, sem dúvida, que é um personagem fundamental”, acrescentou.
Com fotografia de Jorge Quintela, as paisagens atravessam a história quase como uma sucessão de quadros, onde se evidencia a beleza natural, em contraponto com a escuridão e a decadência.
“Houve a intenção de manter um certo mistério, como o próprio autor mantém no livro ou na obra original. Um certo mistério sobre em que tempo estamos ou quem são aqueles personagens, de que forma é que são personagens reais ou são personagens criados na cabeça do escritor, que acaba por também estar a criar, durante o filme, personagens que estão vivos, personagens que estão mortos”.
A parceria com Dada Garbeck surgiu inicialmente pelo gosto que Rodrigo Areias nutre pelas suas composições e pela forma como a música se encaixa no filme, mas acabou por descobrir a coincidência geográfica que viria a dar ainda mais sentido ao conjunto, de que a casa onde o músico cresceu e viveu até ao fim da juventude e sair de Guimarães era paredes meias com a quinta de Raul Brandão.
“Eu não tinha ideia que a casa dos pais dele era contígua à quinta do Alto, o que de certa forma acabou por ser uma coincidência muito curiosa, não só porque ele conhecia bem a obra de Raul Brandão, mas também porque cresceu naquele espaço físico, onde Raul Brandão escreveu toda a sua obra”.
A musicalidade que acompanha as imagens e o texto, reproduzido fielmente das obras de Raul Brandão, pela voz das personagens, tem patente esse desalento que se encontra nos livros e no filme, mas que pretendeu também deixar uma “crítica constante ao estado das coisas”.
Daí o título “A pedra sonha dar flor”, uma adaptação da frase original de Raul Brandão “A pedra ainda espera dar flor”, que traduz esta “vontade de sonhar com outra coisa”.
Na opinião de Rodrigo Areias, há, no presente, um mal-estar que torna atual a crítica que Raul Brandão escreveu há um século, e essa critica social também lhe interessava.
“Há dez anos, quando pensei em fazer este filme, achei que seria difícil perceber, por exemplo, que um grupo de adultos partilhasse o mesmo espaço físico, uma casa, neste caso, uma pensão, e hoje, dado o estado socioeconómico da nação, percebemos que isso é uma realidade absolutamente premente e que, na verdade, está presente no mal-estar socioeconómico de um país que ficou sem casas para as pessoas. Portanto, de repente, há uma realidade que me parecia longínqua, que hoje é absolutamente próxima da nossa realidade”, afirmou.
“A pedra sonha dar flor” estreou-se em março no BAFICI – Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires, e teve antestreia nacional em julho, em Vila do Conde, em formato cineconcerto.
Este modelo não é novo para Rodrigo Areias, que já anteriormente trabalhou com outros músicos – Legendary Tigerman, Rita Redshoes ou Tó Trips - e apresentou filmes com música ao vivo, neste formato de cineconcerto.
A estreia nacional de “A pedra sonha dar flor”, no dia 12 deste mês, será no Cinema Trindade, no Porto, em formato de cineconcerto, e coincide com o lançamento do disco da banda sonora.
Seguem-se apresentações no Cinema Nimas, em Lisboa, no dia 13, no Centro de Arte de Ovar, no dia 14, nos jardins do Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, no dia 15, e na Casa do Cinema de Coimbra, no dia 21. A 10 de outubro é a vez do Cineteatro Casa Municipal da Cultura em Seia, no âmbito do CineEco - Festival Internacional de Cinema Ambiental da Serra da Estrela.
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